quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A Norte a Chuva Parou (b)

De tudo quanto possuia, tinha consciência que a profissão, o estatuto, era o mais valioso. Mas não numa perspectiva de importância a nível da carreira, de destaque perante os outros ou de possuir um poder que mais ninguém obtinha. A importância, a validade, estava nas pequenas coisas que, dia a dia, ia conquistando na sua ausência para com a relatividade do mundo. Sim, tudo era passageiro, finito. Num dia vives, no outro morres. Mas gostava de apreciar o recosto confortável do seu cadeirão, a madeira lisa e fria da sua secretária, a sua sala quente e acolhedora nas manhãs de inverno, no pico de Janeiro. A empregada que lhe trazia um café a ferver e o computador que lhe abria caminhos a um novo mundo. Um mundo onde todas as suas ilusões e devaneios se imprimiam num conjunto inacabado e confuso de caracteres.

Ela escrevia. Uma escrita do tipo de escritor psicótico à beira do suicídio, que transporta para o papel todos os devaneios que, com ou pouca lógica, lhe vão atravessando o pensamento. Ela era como eles, os seus personagens, que ignorando o mundo em que viviam - sem interesse, sem história - encontravam no além uma existência bem mais praseirosa e que resultava, sobretudo, da imaginação.

Doces momentosa aqueles! Quando ela passava tardes a fio fechada sobre si, aconchegada na sua superioridade e importância de não poder ser interrompida enquanto fazia outro trabalho que não era o que lhe competia. A chuva na rua, tempestade de vento, folhas, agitação nervosa dos passantes, um torbilhão de rotinas e acidentes que volviam o mundo do avesso, enquanto ela escrevia.


«O pequeno Tomás corria sem descanso na enconta encarpada. Caiu e morreu. Partiu para o céu. E finalmente foi feliz».

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

catarse

ser por ser
quem também tem de contar
aparecer por ser
com pena de te olhar
um bem
um bem maior
que não fui capaz de ter
pela certeza
inquieta
de te ter
bem longe
junto de mim

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

um dia bem passado...



A Norte a Chuva Parou (a)

Sete pedaços de terra. Batida. Molhada. Ensopada pela lama e pelo tempo. Um vaso plantado junto da porta da entrada. Ela sai. Das sementes que plantou nasceu uma pequena erva. Qualquer dia dará uma rosa. Mas apenas qualquer dia... Hoje, continua a ser apenas mortiço, fraca imagem do esplendor que pdoerá vir a alcançar.


Ela afasta-se da casa e da flor com caminhar alto e atento. Nada a perturba, nada lhe espanta. A terra que utilizou para fazer nascer, para breve, esplendorosa criação, provoca-lhe indiferença. Os homens são seres vis, sem interesse, que povoam as cidades e os campos para neles apenas plantarem o que possuem de mais ruim. Ela acredita que não foi para isso que foram criados, que Deus ou um qualquer ET os colocou no mundo. O planeta não foi feito para suportar os homens, apenas o cosmos.


Dia a dia, caminhando na sua rotina diária, anseia pelo momento em que um meteoro vai, por fim, terminar com uma existência fútil. A política não á nada. A solidariedade não é nada. O bem e o mal, a liberdade e a escravatura são conceitos abstractos sem razão de ser. Apenas o mundo existe, todo o resto é alternativo, varia nas estações e nas épocas, faz parte de uma humanidade que existe enquanto lhe for autorizado que permaneça. O planeta vai suportando. Mas haverá o dia em que o fim pedirá o seu ponto final.


Porque plantou, então, uma planta? Porque deixou parte de si em algo de subjectivo? Nem ela própria o sabe. Há muito tempo que deixou de tentar compreender as contradições do seu comportamento. Sentiu aquela necessidade e pronto! Queria ver algo crescer, queria ter parte de si a possuir significado. Mesmo que tal, para os outros, nada significasse. Porém, tinha vergonha. E caminhava apressadamente agora, temendo confronatar-se consigo própria.


No trabalho acham-na estranha, alheada até do que faz. O patrão avisava-a constantemente da sua ausência da realidade, do que a rodeava de humano, das conversas sem nexo, dos mexerios sem futuro, das piadas sem comédia. Ela tornava a encolher os ombros. Para qu~e importar-se? Nada daquilo ficaria. Apenas o tempo e o nada.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

depois de s. martinho

pedaços


mal amados


crenças


mal preparadas


amores


desencontrados


vidas


inacabadas




tesouros


em ilhas desertas


prateleiras


de colecções


paixões


e brincadeiras


bicicletas


e ilusões




carinho


de alguém que desconheço


sensações


de medo e de frio


quantos males


daqueles que conheço


ainda surgirão


no meu caminho




vida


amarga


sabor


sem subtileza


amor


quase por nada


o navio afunda


e continuo


imersa




janelas


de vidro pintado


liberdade


que não consigo pegar


recordações


do tudo que é nada


hoje tenho vontade


de choras

Chocolate Suiço

Olhando o que conquistei, compreendo que fui genuina. Mas, que tenho? De que pedaços de matéria é feita a minha existência? Sim, tenho encontrado muito do que procuro! Mas aquilo que verdadeiramente anseio está num plano quase inalcançável, uma área tão longínqua quanto pode ser a do sonho.


Sou marinheira de um navio que não sei comandar... Nunca soube. Do que possuo tudo é nada, é um vazio daquilo que realmente desejaria ser, ter, construir. De que servem, afinal, as vitórias se, passado o seu tempo, mais nada são que marcas na memória? Ou nem isso! Que glórias são essas que muitas vezes nem registadas ficam? Esquecemo-las, como se esquecem os minutos sem história do dia a dia.


Um dia alguém virá fazer a minha biografia. Imagino um neto. Escreverá: "A minha avó estudou em tal, tal e tal e tirou o curso de tal em tal. Casou no dia x do ano x. A minha/ meu mãe/pai nasceu x anos depois. Os meus tios em anos x. A minha avó trabalhou toda a vida em...". E se não tiver filhos? O que de mim ficará?


Quando se fala em egoismo penso em filhos. Deve ser o único egoismo extremo que a sociedade não condena e facilmente incentiva. Ter algo a partir do qual nós próprios continuaremos a viver por longas gerações. Um pedaço de nós que não morre nem se apaga. Mas quando eles não existem, que é feito de nós? De que valeu termos vivido? Viver só por viver, que importância tem isso?


Se muitas pessoas se tivessem contentado em viver apenas por viver, provavelmente o mundo não teria sofrido tanto nem nós continuariamos a sofrer. Contudo existe uma necessidade humana de querermos ser nós próprios numa sociedade sem rosto ou com demasiados rostos como exemplo. Da atitude do cego nasce a audácia do surdo. E quem não o consegue olha para todo o lado sem ânimo, sem prazer, um ponto perdido no meio da multidão.


Que saudades sinto do chocolate suiço!

O Valor da Verdade


Quanto vale a verdade? Quanto vale uma boa notícia, o scoop jornalístico? Woody Allen abordou a questão em 2006, apresentando no papel de jovem jornalista arrebatada por uma estória a sua mais recente musa, Scarlett Johanson. Mas as questões sobre os furos jornalísticos, as quezílias entre jornalistas, polícias, advogados, políticos e pessoas comuns já vêm de há várias décadas, quase tantas quantas conta a história do cinema.
O filme A Calúnia, do original americano Absense of Malice, fala de um scoop e das consequências que trouxe para todos os envolvidos. Fala de também de erros, excesso de boa fé (traduza-se o título) e do quanto está em jogo quando se procura acima de tudo uma notícia. Que se esqueçam os valores de verdade – ainda que estes estejam sempre presentes – o fundamental é descobrir quanto do que se extrai das fontes pode ser publicado.
A película aborda sobretudo o papel das fontes, o problema da confiança e da autoridade ou não em explorar situações que estão muito fora do controlo do próprio jornalista. Acreditar ou não? Publicar ou não? Importa realmente encontrar o outro lado ou esperar que este não emita nenhuma resposta. Que esquemas são necessários para de facto conseguir uma estória?
No meio de toda uma encruzilhada de palpites e enganos, a problemática da linguagem que o jornalista utiliza para vender o seu “material”. Condenar ou não? Presente ou Imperfeito, Passado ou Pretérito Mais que Perfeito? Até porque, para os jornais, «se disserem que é culpado acreditam, se não disserem não interessa». É sabido que «muitas notícias vão ser má notícia para alguém». De que interessa então aprofundar ou não a verdade? Ela está lá de qualquer forma, tem que existir uma pequena réstia dela. A forma como a tratamos é que vai estar ligada à nossa maior ou menos crença nas boas intenções de outrem.
Julgo ter, por fim, alcançado o ponto fundamental da questão. Procurando a verdade – e o jornalismo enquanto profissão, enquanto modo de vida, pauta-se sempre pela busca da verdade – qual deve ser o nosso grau de ausência de malícia. Até que ponto devemos ser cegos ao nosso próprio julgamento apenas para cumprirmos os nossos objectivos? Acorrentarmo-nos às palavras de quem pretendemos obter declarações apenas para conseguirmos uma boa estória. Valerá a pena? O que fica depois de tudo isto? O que resta da verdade?
Crenças de parte: devemos ser nós ou não voláteis? No acto da entrevista, da busca da notícia, devemos pensar nos outros ou em nós próprios? Onde termina a fidelidade ao que se nos confessa e começa a profissão, o compromisso, a responsabilidade de comunicar a história aos nossos leitores? Argumentaria que é também uma questão de ausência de malícia. Acima de tudo procurar sempre o outro lado, mesmo que este demore a responder ou nos destrua, pura e simplesmente, a estória. Ficaremos, provavelmente, sem a glória da primeira página, mas possuiremos, por outro lado, a certeza de que enquanto jornalistas, continuamos sempre à procura da verdade e não da sua sombra. Libertar-nos-emos então não só da vaidade como também das manipulações daqueles que nos querem controlar.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Cartas a um desconhecido XIV



Numa pequena aspiração às coisas que mais amo no mundo, compreendi que, afinal, não te conhecia. Quem és? Uma imagem translúcida que paira na minha memória sem traços definidos. És uma sombra. Um pedaço perdido de um quadro pintado sobre uma longa história. Cores esquecidas pela imprensa, esbatidas no prelo. Um quadro sem nome nas paredes do céu. Do meu céu.



Ajuda-me!



Uma angústia sem nome apdoera-se da minha boa vontade, do meu arbítrio. Não sou ninguém se não a conseguir dominar. Os segundos passam; que farei sem eles? Sinto-me afundar num terreno movediço que desconheço a origem. Encontrar pessoas que desconheço pela simples razão de encontrar. Vou perdendo o apreço ao que amo por uma história para contar.

momento inglório

pequena aspiração

do que gostaria de ser...


silêncio

eles estão aí

perco-me

para não te ver.


no dia em que voltares

poderei morrer

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

as coisas que mais amo...e muito mais



Mil flores

Em outros tempos

de menos procura

fui filha do sol

e de outras tempestades

enquanto viver

sob a base da loucura

serei hoje

e para sempre

a menina

sem nomes


Nome que não existe na língua

nem tão pouco

no coração

sou imagem sem rosto

à míngua

orgulho no andar

ar digno

mas de resignação


querer só por querer

é tarefa árdua

quase sem dono

mas querer por bem querer

é não voltar mais

ao princípio

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Do contra

lágrimas

tenho vontade de as ter

um sufoco

que não consigo

controlar

quero

recuperar tudo o que não tenho

saber

quando é possivel voltar


sofro

numa inconfidência exigente

planeio

conspirações que não são minhas

aparento

uma pessoa sem rodeios

sou

uma menina sem iniciativas


depois

de tudo quanto pensei

acredito

que nunca ocuparei o mundo

sei

que a vida que não tenho

faz parte

do que conquistei no meu mundo


perder os medos e os louvores

ser senhora de mim e das minhas escolhas

olhar

sem baixar a cabeça as opressores

e ter

muito mais por que lutar


sou marinheira de um navio

que não sei navegar

Folhas Caídas


Queria ter com quem partilhar outros tempos. Queria saber o quão importante é conhecer o pequeno sentido das coisas. Olhar o passado e com ele construir um presente lógico, racional, resultado de um crescimento e de uma sabedoria que não possuo. Queria não errar. O mundo tem muito mais beleza quando não é resultado dos erros humanos. Continuamos a possuir a nossa inocência original, continuamos a trabalhar sem as ganâncias de outros povos. É a guerra que nos macula, é o sofrimentos que nos trona cruéis. Queria poder ter-te sempre do lado para compreender sem mácula toda a magnificência das coisas. Mas, estando só, que outro caminho me resta?

Caminho pelas ruas. As pessoas passam. Contemplo casais com rostos tristes e felizes, observo crianças que brincam sem receio dos perigos que as cercam, encontro idosos de olhar cansado e paixão resignada a uma realidade que já não lhes pertence. Observo tudo isto enquanto passeio. Sinto a frescura do vento a gretar-me a pele desidratada, o cabelo em desalinho no pouco trato que lhe forneço, a roupa a cheirar ao fumo de um café onde lanchei, nas costas carrgando o peso de livros e livros que ensinam de tudo e nada. Estou só no meio de uma estrada por onde os carros não cessam de passar. Buzinam mas não travam, gritam mas não ajudam. Como reagir?

Um cachorro corre desenfreado atrás de uma bola de ping-pong, uma senhora de meia-idade carrega quatro sacos de compras, o eléctrico pára na paragem que lhe corresponde e abre as portas traseiras a uma jovem sem peito. Alguém deixou cair uma caneta no passeio.

Chegou o Outono.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Manobras na Casa Branca

Talvez por ser um escândalo, talvez por ser um acontecimento, acima de tudo, mediático, o filme Manobras na Casa Branca apresenta aquele tom jocoso, de comédia vicentina que, entre gargalhadas, nos diz a verdade. E, talvez, por se tratar de uma realidade tão sensacionalista, tão populista e, até certo ponto, decadente, o mundo cinematográfico seja chamado a participar, tão bem enquadrado em todas as manobras que os homens do presidente habilmente engendram para o libertar de uma situação embaraçosa. Criando uma guerra, criando um herói, criando, por fim, a mensagem de liberdade e igualdade que os EUA tanto gostam de difundir.
Em termos de comunicação política este filme diz imenso, mais que não seja pelo comentário hilariante de Robert de Niro: « A guerra acabou, acabei de ver na televisão!». A partir daqui uma série de verdades são desmanteladas e levadas ao extremo. A criação de uma guerra para distrair os media de um escândalo revela-se então um conceito antigo, por diversas vezes usado e com bons resultados. Uma questão de show business, criar o espectáculo, o slogan, a encenação do real, a divulgação de uma série de imagens que dão a aparência da guerra quando, no fim, apenas nos lembramos da frase: «Coragem Mãe!».
O que sabemos de facto das guerras após o surgimento da televisão? Começam com uma série de boatos ao acaso, denúncias verdadeiras ou falsas, culminado com a transmissão de explosões e prédios a desmoronar em países que pouco conhecemos e que, por tal, aprendemos a temer. É sabido que durante a primeira guerra mundial a propaganda era fortemente utilizada para motivar as tropas das trincheiras a continuarem a combater. O que mudou nos nossos dias? Olhamos simplesmente para um espectáculo mediático, o que a televisão e o cinema nos dizem, e esquecemos de questionar a veracidade dos acontecimentos e toda a lógica que está por trás deles. E quando nos preparamos para erguer o braço, tentar perceber o que de facto se passou, a emissão noticiosa já se alterou, um novo facto marca presença no espaço público e todo o resto fica resumido a uma data difusa e um slogan barato. Táctica: «change the subject, change the lead» - distrai as atenções para outro assunto e os cabeçalhos focar-se-ão nele.
O filme, de resto, começa com uma chave curiosa: «Porque é que o cão abana o rabo? Porque um cão é mais esperto que o rabo. Se o rabo fosse mais esperto, o rabo abanaria o cão». Esta lógica faz pouco sentido para quem não traduza à letra o título original do filme: Wag the Dog (abanando o cão). Daqui se depreende também uma moral interessante. Actualmente a sociedade é controlada pelos media, não podemos fugir a essa realidade! Somos o “rabo” do quarto poder. Mas até que ponto esse quarto poder, que Mário Mesquita afirma equivocado, não pode ser controlado por aqueles que julga dominar? O escândalo político afecta demasiado os políticos para eles não possuírem um plano de fuga! Até que ponto não serão então capazes de “abanar o cão”?
Para mais não é necessário ser-se credível, apenas distraí-los. O filme assenta exactamente nisso, numa distracção. Levada a contornos monumentais de modo a perdurar por quase duas semanas, mas acima de tudo um encenação, um «teaser», o osso que retira o cão do seu posto de vigia para deixar o ladrão entrar em casa. Um espectáculo, tal como a Miss América!
Mesmo que alguém de fora procure negar um facto, se surgir na televisão ele está autentificado. A sequência com a CIA é bastante exemplificativa: «Não há nenhuma guerra!; Claro que há, veja-a na TV!». Até porque...quem de facto se interessa com o presidente dos EUA? Ninguém vota! Cada um está demasiado interessado com os seus próprios problemas para se concentrar em algo tão insignificante como o governo do seu próprio país. E na sociedade da informação o que realmente interessa é a aquela que é regida pelo espectáculo. O infotainment, ainda que acima da verdade! Pois um político na democracia dos media continua a ser um produto que, para ser vendido, necessita de publicidade. A sua aceitação pela parte do público vai depender do bom ou do mau efeito da propaganda.
Dito desta forma, procurei demonstrar com segmentos do filme a mensagem que se depreende deste. Em resumo, que o mundo dos media é uma encenação, um “show” facilmente manipulável, fundado em slogans e imagens chocantes. Para esconder um escândalo tem que se ser o mais esperto, antecipar as reacções e prever as consequências. Para manobrar o público tem que se saber manobrar os media, mudar o tema antes de se aprofundar a crise e trabalhar como um canalizar: deixando tudo limpo. A democracia dos media é, afinal, «show business» e o espectáculo tem sempre de continuar...

A natureza do escândalo político


O texto que de seguida resumo pertence à obra Escândalo Político, de J. B. Thompson. Este capítulo assenta sobre uma série de perguntas: o que faz de um escândalo um escândalo político, que características possui, porque são uma fonte tão grande de preocupação para os políticos e uma ameaça tão séria na actual sociedade? Após os casos Watergate e Profumo, o escândalo político tornou-se um ponto essencial da vida política, razão pela qual deve ser estudado.

Definindo o escândalo político
Se atentarmos apenas na figura do político e esquecermos as relações e instituições sociais, podemos argumentar que um escândalo político é-o por possuir essa pessoa proeminente no centro da controvérsia. Contudo esta é uma explicação insuficiente. Markovits e Silverstein, olhando às instituições políticas, consideraram-no então o resultado da violação de um processo devido, ou seja, das regras e dos procedimentos obrigatórios ao exercício do poder.
Deste raciocínio retiraram duas conclusões! Primeiro que o Estado liberal conduz uma tensão entre a exaltação do individualismo e da liberdade pessoal e a existência de um poder mais informal e secreto, necessário na boa condução de um governo. São os tais procedimentos devidos, comportamentos obrigatórios pelos governantes para com os governados, que ajudam a aliviar essa tensão e a restringir os abusos de poder. Quando estes falham, quando alguém abrange para si mais poder do que o suposto, surge o escândalo político. É por isso que eles só existem nas democracias liberais. Segundo que nem todos os escândalos rotulados como tal são escândalos políticos, apenas sexuais ou financeiros. Terá sempre que existir um determinado abuso de poder através dos processos e procedimentos devidos.
Esta visão torna-se, no entanto, demasiado restritiva para Thompson. O autor alega que dentro do conceito aqui tratado devem estar inseridos não só os abusos de poder, como também os comportamentos ditos impróprios no âmbito financeiro e sexual. Desta forma a situação alarga-se a outros regimes que não as democracias liberais, sendo que, no entanto, é nestas que eles predominam.
Mas porque razão são as democracias liberais tão susceptíveis a escândalos? Por um lado são um campo de interesses em constante tensão, especialmente propenso a golpes partidários para derrubar os opositores. Nesta linha, a reputação é de suma importância, podendo uma mancha na carreira ditar o fim de qualquer aspiração política. Por outro lado, são estados onde os media têm uma autonomia quase total, além do que possuem interesses puramente comerciais. Outro factor de peso resulta da natureza das democracias, em que, pelo menos em tese, ninguém está acima da lei e pode ser julgado publicamente. Num regime autoritário o poder está todo centrado numa pessoa, assim qualquer ameaça de escândalo pode ter custos muito mais altos do que aqueles que alguém está disposto a pagar (morte, prisão).
Refuta-se desta forma a teoria de Markovits e Silverstein, mas como explicamos a natureza do escândalo político?

Poder simbólico e o campo político
A discussão centra-se assim em torno da definição: escândalo político é aquele que envolve pessoas e acções de um campo político e que, por tal, têm um determinado impacto nas relações desse campo. É através do campo que todo o escândalo político se desenvolve, sendo necessário portanto a sua análise.
O campo, segundo Pierre Bourdieu, é um espaço ordenado por posições sociais, definidas pelas relações que estabelecem com os recursos a si ligados. Dentro de tais campos, os indivíduos ocupam posições e usam os recursos de modo a obter determinado tipo de interesses. Em síntese, toma-se por definição que um campo político é um espaço de acção e interacção do uso do poder político (pode-se ainda falar de poder económico, coercivo e simbólico). Este poder político coordena e regula a acção do indivíduo, sendo por tal efectivo dentro de uma estrutura ordenada de instituições a que chamamos Estado. Campo político é assim um espaço regido pelas instituições do Estado.
Contudo, reger significa governar, levar alguém a obedecer. Um Estado implica sempre um grande grau de autoridade que lhe é conferido, segundo Max Weber, pelo poder coercivo e simbólico. Estes poderes são essenciais para creditar o bom exercício do poder político, sendo que o primeiro só deve ser usado em situações excepcionais. Na vida corrente, a acção do governo deve-se manifestar através de formas simbólicas, num modelo mais moderado e abstracto de actuação governativa.
Thompson define o poder simbólico como a capacidade para intervir, criar, influenciar acontecimentos e crenças através da produção e transmissão de formas simbólicas, por meio dos meios de comunicação e informação. O líder deve ser portanto detentor de um capital cultural e simbólico, ou seja, deve ter capacidade para saber lidar com estes recursos mediáticos de modo a que eles lho retribuam mostrando uma imagem de prestígio e respeitabilidade, tão cara a qualquer político. Campo político torna-se assim um campo ligado à obtenção e exercício do poder político, através do uso de vários poderes que lhe são imprescindíveis, como o simbólico.
Este campo está presente em todo o tipo de regimes governativos, sendo que no democrático parlamentar liberal encontra também um subcampo, esse constituído por todas as instituições que auxiliam o poder (parlamento, câmara de deputados, câmara dos comuns, etc). Impera uma lógica dupla: a luta interna do subcampo e a que liga esse subcampo a um campo mais amplo, o dos cidadãos. Numa ligação difusa e abstracta, os políticos que sabem manejar esta dupla lógica e utilizar o poder simbólico adquirem vantagens.
Numa nova tentativa de compreender o campo político, olha-se à sua relação com os media. Se dentro do subcampo as relações entre os seus membros continuam bastante fechadas, num plano superior o desenvolvimento dos novos meios de comunicação permitiu uma abertura nunca antes vista. Naturalmente que as relações com os cidadãos face a face ou através de carta subsistem, mas a norma assente é que as eleições, o crescimento das carreiras e a sua destruição se pautem pela divulgação televisiva e da imprensa. Aos jornalistas, até certo ponto, convém inclusive dominar esse poder simbólico, aproximando-se cada vez mais das instâncias do poder e vivendo com elas em certa harmonia ou em constante tensão. Pois quaisquer imagens ou informações transmitidas podem favorecer ou distorcer o esforço do subcampo e condicionar a relação entre o campo e o público, como no caso das pesquisas de opinião. Globalmente debatidas pelos media, elas são um instrumento essencial para aferir o grau de popularidade das políticas e dos seus políticos, servindo de material de apoio ou contestação a uma campanha.
Chegados a este ponto torna-se clara a importância do escândalo político. Os indivíduos que se inserem no campo político necessitam do poder simbólico para subsistir, manipular, acreditar, fazer acontecer, alcançar apoios dentro do subcampo e manter pelo máximo de tempo possível o poder político. Ora, esse poder simbólico está estritamente ligado a um bom capital simbólico, ou seja, o prestígio, a reputação, o respeito acumulado durante longos anos de trabalho. Os políticos ficam assim vulneráveis. Qualquer mazela no seu capital pode destruir por completo toda a sua credibilidade, quer para com o público quer para com o subcampo, e afastá-lo indefinidamente do poder que tanto ambiciona. Nas democracias liberais possuir um bom capital simbólico, uma reputação consistente, um bom-nome, é um factor de suma importância para a vitória na política, assim como do partido ao qual se pertence.
Existem dois tipos de escândalos políticos:
Escândalos localizados: surgem no subcampo político e permanecem ligados a ele (intrigas de corte nas antigas sociedades, zonas em que os media são restringidos);
Escândalos políticos mediáticos: nasceram com as democracias liberais e o crescimento e independência dos media, surgindo quando o campo e o subcampo políticos entram em embate com os meios de comunicação mediáticos (todos os escândalos actuais).
Nos dias de hoje mesmo os pequenos escândalos localizados dentro dos subcampos, se descobertos pelos media, são rapidamente transformados em grandes escândalos políticos. Assim se explica porque razão eles são tão correntes nas sociedades democráticas de cariz liberal, visto que nos regimes autoritários e repressivos, onde os media são altamente controlados, eles se mantêm a nível local. Um verdadeiro escândalo destrói por completo qualquer capital simbólico acumulado e, sem esse capital, numa sociedade como a nossa, o político jamais conseguirá o poder simbólico de que tanto precisa para alcançar o poder político.
Desta forma se compreende porque os escândalos são tão utilizados nas lutas políticas e a televisão, a imprensa, ou qualquer outro meio, tornam-se no ringue onde essa querela é disputada. É nos media também que o capital simbólico é construído, carreiras são destruídas e grandes líderes lançados. Nos media fica apostado o bom-nome, o crédito dos membros do campo político sobre a opinião pública, podendo o escândalo destruí-lo.

Por que o escândalo político é mais predominante hoje?
Escândalos políticos sempre existiram, mas porque razão, principalmente desde os anos 60, eles se tornaram tão frequentes? Existem duas respostas, mas nenhuma suficientemente convincente. Enquanto a primeira faz azo ao declínio dos padrões morais dos líderes políticos a nível pessoal e da boa condução do seu cargo, a segunda afirma a mudança crescente dos códigos que avaliam o comportamento dos chefes de governos e seus colegas (o facto dos políticos oferecerem presentes caros em campanha não é tão bem visto hoje como era antigamente).
Ambas as explicações são contestadas por Thompson. A pertinência actual do escândalo político resulta isso sim de vários factores, concretamente cinco:
A crescente visibilidade dos líderes políticos: com o desenvolvimento crescente dos media, os políticos necessitaram de estar muito mais expostos ao julgamento do público. O campo político tem-se tornado cada vez mais num campo mediático, ou seja, o político precisa da televisão para se afirmar e esta molda-o cada vez mais ao gosto dos telespectadores. Estando a sua imagem mais exposta, mais facilmente ela se torna propensa a um ataque que a possa destruir. Mesmo que o político tente manipular o media, o seu grau de imprevisibilidade é demasiado grande e o esquema pode voltar-se contra ele;
A mudança nas tecnologias de comunicação e vigilância: as novas tecnologias estão em constante desenvolvimento e tornam-se cada vez mais acessíveis, sendo difícil controlar os seus efeitos 8novos meios de espionagem);
A mudança na cultura jornalística: os casos de escândalo dos anos 60 nos EUA propiciaram o jornalismo investigativo que vem utilizando, agora sem as reservas éticas de outrora, estes novos meios de comunicação e vigilância para descobrir os segredos obscuros da política;
A mudança na cultura política: as mudanças sociais da segunda metade do século XX retiraram aos partidos tradicionais o tipo de classes que lhes davam apoio, tornando-se estes partidos catch all. Caiu a política ideológica, que deu assento à política da confiança. Os eleitores não se sentem mais seguros com as tradicionais lideranças cheias de idealismos. Pretende-se uma figura com carácter e confiança, capaz de tomar decisões sensatas na complexidade da sociedade actual. Daí que a posição em causa do seu crédito, das suas palavras, seja um escândalo. Por outro lado, com a uniformização das tendências políticas, os membros do subcampo procuram novos meios de se diferenciar pela via do melhor carácter. As falhas de uns são usadas pelos outros para se afirmarem (ex.:Jimmy Cárter, sucessor de Nixon);
A crescente regulamentação da vida política: após o Watergate, os EUA aprovaram o Ethics in Government Act, marco na regulamentação da vida política. Muitos países, após este caso, criaram legislação de modo a regular a actuação política e a prevenir escândalos. Desta forma o teste à credibilidade ganha mais interesse e os media esforçam-se mais nessa cobertura, aumentando a possibilidade de escândalo.

Culturas políticas do escândalo
Todas as características apresentadas formam a chamada cultura política do escândalo em várias das sociedades ocidentais. Por este conceito entende-se um conjunto algo confuso de regras, convenções, atitudes e expectativas que suportam a vida política e moldam as formas de interacção e comunicação presentes no campo político. O subproduto dessa cultura é, obviamente, o escândalo, não existindo portanto uma forma igual de cultura mas uma multiplicidade delas, situações que se adaptam às circunstâncias encontradas. O desenvolvimento dos media faz com que essas tais circunstâncias (tradições, memórias, convenções) se uniformizem, se internacionalizem (via CNN), mas não retira a especificidade que a cultura do escândalo assume em cada sociedade.
No mundo que conhecemos o escândalo tornou-se uma característica assente da nossa sociedade. Quem actua no campo político tem que estar predisposto para o escândalo, avaliando-se mesmo o seu factor de risco por parte dos partidos (não está em causa somente o indivíduo, mas toda a organização). Por outro lado, o público pode começar a ficar saturado dessa cultura, que desacredita não só os líderes políticos como os próprios media que insistem em transmitir o grande plano da situação. Nasce assim a exaustão do escândalo.
De uma forma geral, concluiu-se que o surgimento do escândalo político na actual sociedade é o resultado das características e convenções que a sua cultura específica assumiu. Vivemos numa democracia liberal dominada pelos media, estado mais que suficiente para criar as condições necessárias à divulgação de caos pontuais que facilmente se transformam em grandes crises governativas.


sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Sobre Feiras

Feiras. Todas mais ou menos iguais, todas mais ou menos próximas, todas mais ou menos interessantes. Quem gosta de feiras persegue-as constantemente, nunca esquecendo aquela excitação pueril que o leva a saltar de barraca em barraca, mesmo que vá encontrando sempre mais ou menos o mesmo, mais ou menos igual, mas sempre recebido com o gosto de uma surpresa.
Há quem prefira feiras do livro. Só e somente. O aconchego taciturno de uma biblioteca, misturado com o odor centenar do papel timbrado. O prazer de sentir um tremor nos dedos ao folhear páginas desconhecidas, a abertura, quase mágica, da mente ao querer encontrar novas histórias, novas teorias ou, simplesmente, preços decentes! Talvez seja por isso que a Feira do Livro de Coimbra seja tão concorrida. Ela é, sempre e afinal, uma cidade de estudantes universitários eternamente à caça de uma pechincha, daquele livro caríssimo que é extremamente vital para a boa função de uma cadeira, daquele romance espectacular que meio mundo já leu e que ainda não se conseguiu adquirir. Talvez seja por isso...
Realiza-se todos os anos pela época da Queima das Fitas. Entre os fins de Abril e os princípios de Maio a expectativa é grande, para quem gosta de feiras. Na Praça da República, mesmo ao lado do café Cartola e não muito longe das escadas Monumentais, uma tenda de cor alva ergue-se, enorme, dando visibilidade e publicidade a um evento anual. Se não conseguir vender pelo menos chama as atenções, pois quem por ali passa não lhe é indiferente. Ainda que se tentasse fechar os olhos e não ceder ao espírito curioso que o mundo consumista propaga, as duas largas entradas, com extensa vista para um interior auspicioso, impõem a sua presença. O olho espreita, o ouvido atende, o corpo move-se e deparamo-nos na frente de um aglomerado de bancas que esperam por nós.
Quem gosta de livros não podia sentir-se mais em casa. São metros e metros de séculos e séculos de produção escrita. Encontra-se de tudo! Desde a novela mais rocambolesca à grande obra prima, desde a tese mais polémica à teoria da conspiração, da prosa à poesia, do testemunho ao ensaio. Ordenados por editoras que procuram expelir para o público ou as últimas novidades ou os excessos em armazém.



Só para quem gosta de feiras, naturalmente...

Divagões do momento

por quanto
te dás?
por quanto
te queres?
perdoa-me
sei que o pretendes
esquece-me
para sempre

não olhes
nos meus olhos
não te percas
onde não deves
por mais que tentes
por mais que esperes
nada do que é teu
me pertence

nem eu o quero
nem eu o desejo
só pretendo
uma recordação
daquilo que quis
em determinado tempo:
uma cor nos olhos
e lágrimas
no coração

o mundo tem destas coisas
ter-te por não te ter
és aquilo que desejo
mas o qual repelo
mesmo sem querer
um desejo inquieto
que não pode ser contido
mas que arrebata
maltrata
até possuir
o pretendido

sem rimas
ou poesias
falando
só por falar
perco-me entre as linhas
daquilo que me é proibido
amar...

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Záijiàn

Impacto Ambiental - A Egas Moniz

Vulto incontornável do século XX português, Egas Moniz foi o primeiro intelectual lusitano a alcançar o prémio Nobel pela sua investigação na área da imagologia e da psicocirurgia, com a descoberta e desenvolvimento da angiografia e da leucotomia pré-frontal. Aquém de quaisquer polémicas que estejam na retaguarda dos trabalhos Moniz, o seu legado foi fundamental no desenvolvimento da medicina da primeira metade do século XX, legando-nos uma herança que tem consequências ainda nos dias de hoje.
Egas Moniz não nasceu, efectivamente, com tal nomenclatura, nasceu Abreu em Avança a 29 de Novembro de 1874. A sua infância pouco tem de idílica e menos ainda de psicologicamente saudável. Com apenas 13 anos morre-lhe a irmã, deixando-o profundamente perturbado. Nos anos seguintes, e até completar 24 anos, a morte ceifa-lhe toda a família chegada e a penúria retira-lhe todos os bens, vendidos em hasta pública após a falência do negócio de família. Em plena juventude, encontrava-se sem ninguém.
É em Coimbra que o futuro médico, cientista e político inicia a sua carreira superior. Após os três primeiros anos de preparatórios médicos, entra finalmente no curso de medicina em 1984. Foi nesta cidade que ele viria a sofrer a primeira crise de gota, aos 24 anos, doença da qual padeceria até ao fim da vida e que o impossibilitou de tomar em mãos a prática das suas experiências. Como estudante destacou-se entre os outros no auxílio aos colegas pelos seus conhecimentos matemáticos, chegando mesmo a compor uma sebenta que analisava uma obra de álgebra do Dr. Souto Rodrigues. Tendo decidido alcançar mais graus académicos, defende, em 1900, a sua tese de licenciatura (Alterações anátomo-patológicas na difteria) que incluía a célebre dissertação A Vida Sexual – Fisiologia. Casa nesse ano com Elvira de Macedo Dias, não tendo havido filhos do casal.
Dois anos volvidos, Moniz completa a sua dissertação com A Vida Sexual – Patologia, que viria a dar origem à obra A Vida Sexual, bastante polémica na sua época mas à qual apenas apontaram o inconveniente de não ter sido escrita em latim para ter ainda maior divulgação. É nestes domínios que surgem as suas primeiras observações eugénicas, no facto de se dever proibir o acto do matrimónio a indivíduos com doenças graves contagiosas, de modo a não permitir a sua proliferação através da descendência.
Catedrático em Coimbra em 1910, rapidamente se transfere para a recente Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em grande parte provocada pela sua ligação cada vez maior à política e ao regime republicano que acabava de vingar em Portugal. A abertura do seu consultório e as idas cada vez mais frequentes a França acabaram por o desvincular à cidade académica. Na capital ficaria a cargo da cátedra de Estudos Neurológicos, destacando-se cada vez mais o seu interesse por estas matérias.
Ligado à política desde os tempos de estudante (foi contemporâneo de Sidónio Pais em Coimbra, não é de estranhar que tenha relegado a sua carreira científica por tantos anos, voltando apenas a ela por volta de 1919, já com 45 anos. Em 1908 chegou a ser preso pela tentativa de derrubar a ditadura de João Franco. Em 1917 foi fundador do Partido Centrista. Até ao término da sua carreira política foi deputado, Ministro de Portugal em Madrid (1918), Ministro dos Negócios Estrangeiros (1918/1919) e delegado à Conferência da Paz (1918/1919). Foi ainda responsável, no âmbito da política laicizante da primeira república, pelo restabelecimento das boas relações de Portugal com o Vaticano. Com a morte de Sidónio Pais e a sua substituição abrupta na Conferência da Paz, Egas Moniz desilude-se por completo da política e resolver enveredar por outros caminhos, concluindo que tal carreira é feita de “ilusório sucesso e muitas contrariedades”.
Egas Moniz nunca se desvinculou da sua actividade médica, manteve a sua clínica aberta e recebeu todo o género de pacientes, sendo inclusive vítima de um atentado por um doente. Liberto da política, pôde enfim dedicar-se por inteiro a essa prática, manifestando ainda o desejo de encontrar algo novo no mundo científico. É neste sentido que se dá a descoberta da angiografia, que lhe valeu o Prémio Oslo em 1945, e da terapêutica da leucotomia pré-frontal, da qual receberá o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949.
Muitos debates se têm focado quanto ao legado científico de Egas Moniz. A acusação americana de que o Nobel lhe deveria ser retirado tem os seus fundamentos, não deixando no entanto de se considerar inverosímil quando o assunto é estudado mais a fundo e seriamente. Por outro lado, há quem considere a angiografia a sua descoberta mais importante e, de facto, fulcral para a detecção actual de tumores.
A angiografia cerebral beneficiou dos vários estudos que lhe antecederam e de variadas descobertas, como a dos raios-x em 1985. Os desenvolvimentos no âmbito da anatomia e da fisiologia do sistema nervoso, além da electrofisiologia, foram fundamentais, assim como os estudos de cientistas como Ramón y Cajal, Babinsky, Souques ou Sicard. Iniciou os seus estudos com o apoio sempre presente de Almeida Lima, ao qual pediu segredo aquando as suas primeiras experimentações com animais (cães). O objectivo era conseguir visualizar os vasos cerebrais através de uma injecção de determinada substância na carótida interna. A experiência foi considerada bem sucedida. Depois da experimentação em cadáveres passou-se para os seres vivos, porém os resultados não foram de todo animadores, resultando no saldo da morte de um doente com parkinsón. Renovada a metodologia, com novas substâncias de contraste e concentrações, surge o primeiro êxito a 28 de Junho de 1927.
Enquanto método de diagnóstico, a angiografia rapidamente se divulgou, originando escola e destacando personalidades como Reynaldo dos Santos ou Lopo de Carvalho. Mas o que de facto deu notoriedade a Moniz e Almeida Lima foi o desenvolvimento da psicocirurgia, na ânsia perene de descobrir um tratamento cirúrgico para determinadas doenças mentais, tais como a esquizofrenia ou a psicose. Recorde-se que antes desta época não existia qualquer meio de tratamento destes doentes, amontoando-se estes em hospícios e sofrendo com eles a agonia da doença.
Um dos dedos que se apontam a Moniz é o facto de este ter passado directamente para a experimentação a partir de um teoria, sem antes se envolver nos estudos devidos sobre a matéria. Efectivamente esses estudos existiram, mas foram praticados por John Fulton em chimpanzés e, a partir daí, adaptados ao ser humano pelo médico português. A teoria incidia sobre a hipótese de que através da lesão da massa branca do lobo pré-frontal, por meio de um pequeno instrumento chamado leucotomo, se poderia diminuir o comportamento agressivo e nervoso (conceito cérebro/comportamento de Cajal, também com influências de Pavlov) de doentes graves sem outro meio de recuperação. A operação quase simplista e os resultados visíveis da intervenção deixaram a comunidade científica entusiasmada, relegando para segundo plano determinado efeitos secundários considerados menores face aos benefícios que a leucotomia pré-frontal provocava.
Desde que Moniz ouviu os estudos de Fulton, em 1935, até à sua nobelização, em 1949, esteve presente em cerca de 100 leucotomias, praticadas pelas mãos saudáveis de Almeida Lima. A decadência actual da psicocirurgia resulta do radicalismo praticado pelo americano Walter Freeman que ao tomar conhecimento do êxito de Moniz desenvolve uma nova variante do procedimento: a lobotomia. Numa intervenção que durava cerca de uma hora, com um instrumento semelhante a um picador de gelo, Freeman destruía por completo o lobo pré-frontal. De facto resultavam-se grandes melhoras na agressividade comportamental dos pacientes, mas estes perdiam grande parte da sua capacidade mental. As milhares de lobotomias que se fizeram graças a esta radicalização foram a principal causa da má reputação a que, trinta anos depois, a leucotomia de Egas Moniz se viu votada. A lesão brutal de uma parte do cérebro responsável pelo planeamento comportamental e o seu uso desenfreado e excessivo, mesmo depois do aparecimento dos psicofármacos e em doentes que não correspondiam às tais “doenças graves sem outra possibilidade de tratamento” de Moniz, levam à luz das novas descobertas científicas a constatar-se a sua crueldade e a inúmeros processos e culpas ao Nobel português, além de produções cinematográficas como Voando sobre um Ninho de Cucos, que deu o óscar a Jack Nickolson. Acontece que, na época, o consentimento informado estava longe de ser pensado e a exigências da guerra pediam pragmatismos.
A possibilidade de obter os mesmos resultados pela via farmacêutica sem os danos permanentes da cirurgia cerebral reduziram a inovação de Egas Moniz ao esquecimento e à ruína, contudo este já não presenciou essa decadência. Aos 75, juntamente com o cientista suíço Rudolph Hess, o médico português é galardoado com o Nobel levando ao auge a leucotomia e glorificando, tardiamente, a angiografia. Por detrás desta atribuição destaca-se a importância do 1º Congresso Internacional de Psicocirurgia, em Agosto de 1949 em Lisboa, sob a alçada de Freeman. Foi nela que a delegação brasileira propôs a candidatura ao Nobel, prémio que não viria a receber pessoalmente na Suécia por motivos de saúde. O seu êxito teria ainda outros pontos altos, como a criação do Centro de Estudos Egas Moniz para investigação neurológica e a distinção com a Grã-Cruz de Santiago de Espada.
Descrito por António Damásio como bom-vivant requintado, interessou-se por arte, jogos de cartas e literatura, chegando a conviver com Teixeira Pascoaes. Jubilado oficialmente em 1944, Egas Moniz viria a morreu vítima de uma hemorragia aos 81 anos, em 1955.

Ni Hao

Introdução a Gustav Klimt

Gustav Klimt foi para a arte o que Freud significou para a medicina. Uma revolução na forma como as linhas e os traços, as cores e as formas, as texturas e os ritmos podem dar uma nova visão da obra do artista muito para além da mera reprodução realista. Por baixo da ponta do iceberg existe muito mais que a ilusão do objectivo. O artista tem alma, tem espírito, tem vontade, tem uma interpretação própria do que vê, ouve e sente. As emoções transmitem-lhe acima de tudo a forma como encara um objecto, um ser, uma paisagem, definem o seu mundo e a sua fantasia, os seus sonhos e constatações, não podendo por tal de estar afastadas da sua obra. O homem é emoção, sentimento, e sendo a arte uma produção humana ela reflecte sempre o eu do artista, a sua interpretação do que o envolve, o que é e o que deseja ser. Reflecte, afinal, a sua alma.
Klimt não foi meramente um pintor do feminino, contudo foi aí que se notabilizou. Desde os tempos em que ainda seguia o academismo até ao ponto máximo da sua maturidade enquanto pintor, as mulheres fizeram parte da sua vida e da sua obra, inspiraram-no, deram-lhe glória e fracasso, sem contudo se ter deixado prender a nenhuma. Elas surgem como mães, jovens, velhas, crianças, sereias, demónios ou, simplesmente, mulheres na sua condição humana, criando um resultado de grande erotismo mas também de profunda beleza.

Sociologia da Imprensa:Comentário ao texto de Max Weber

Em torno de um programa de pesquisa para a chamada sociologia da imprensa, tem-se como base um conjunto de questões que deveriam orientar o trabalho do sociólogo na análise da influência cada vez mais peremptória de um determinado tipo de indústria na opinião pública e de que forma essa opinião influencia essa indústria. O tema é actual e merece reverência. É fácil constatar que num espaço de um século o jornalismo evoluiu e assumiu uma importância longe de ser imaginada nos seus primórdios. A isso se deve, naturalmente, a alfabetização da sociedade, o desenvolvimento das telecomunicações e a inevitável globalização. Contudo, e apesar desses efeitos serem sobejamente conhecidos, não existe uma verdadeira pesquisa em torno do tema, erro grave num tempo a que muitos já intitulam da era da sociedade da informação.

Há questões peremptórias: que aspecto tem o público na actualidade e que aspecto terá no futuro, o que se torna público por meio da imprensa e o que não?; o que deve tornar-se público?; quais são as opiniões que existem hoje em dia a respeito, quais existiam antes, e quem são os que opinam?; em que medida essa crescente demanda de capital significa um crescente monopólio das empresas jornalísticas existentes; nos encontramos (…) diante da criação de trusts no sector de imprensa?; o que significa o desenvolvimento capitalista no interior da própria imprensa para a posição sociológica da imprensa em geral, para o papel que desempenha na formação da opinião pública?; quem escreve, hoje em dia, para um jornal estando fora dele e o que escreve?, quem não escreve e o que não escreve?, por que não?; de onde e como a imprensa obtém o material oferecido ao público?; é o constante aumento da importância da mera notícia um fenómeno generalizado?; porque será que a imprensa americana privilegia a exposição de factos enquanto e a francesa dá mais atenção aos artigos de opinião?, de onde (…) provém a diferença?; que consequências tem esse produto (…) que finalmente constitui o jornal?; a que tipo de leitura o jornal acostuma o homem moderno?; de que forma a leitura modela a forma como o homem vê o mundo?. Questões elaboradas na tentativa de definir o papel da imprensa na sociedade mas que, porém, como Weber constata, ainda não obtiveram resposta!
O autor afirma e bem que, de facto, não existe um verdadeiro método, uma verdadeira pesquisa que dê azo a todo este rol de perguntas, fontes fundamentais para percebermos em grande parte o mundo que actualmente habitamos. Desta forma propõe uma orientação para se proceder a uma investigação da sociologia da imprensa. Os passos que indicia resumem, no fundo, todas os temas de debate que já enumerou durante o texto. Assim, num primeiro momento, Weber inquere: O que aporta a imprensa à conformação do homem moderno? Isto, dito por outras palavras, centra a atenção do investigador para o que faz a imprensa para “controlar”, de certa forma, (se é que o conceito é utilizado correctamente) o novo homem, o homem da sociedade da comunicação que tudo sabe e tudo quer saber. Não basta simplesmente existir uma imprensa. Ela tem de se saber adaptar aos diferentes tempos, às diferentes mentalidades para produzir o seu efeito.
O segundo passo deve inferir: que influências exerce sobre os elementos culturais objectivos supraindividuais? Que deslocamentos produz neles? O que se destrói ou é novamente criado no âmbito da fé e das esperanças colectivas, do “sentimento de viver”, que possíveis atitudes são destruídas para sempre que novas atitudes são criadas? Ou seja, qual é a influência que a imprensa vai exercer sobre os valores, a ética e a moral, a cultura geral dos seus leitores, que novos objectivos cria e que outros destrói? Basicamente, vendo os dois lados da moeda, ou seja, a produção e a difusão da informação, está por este meio criado o processo que auxiliará o investigador na sua pesquisa para compreender a imprensa, as suas especificidades e os seus efeitos, para, num último momento, poder enfim ser criada uma nova ciência.
Claro que da teoria à prática vai um longo passo! Weber sabiamente destaca que o trabalho é muito e o pouco que se fez não permite um avanço mais gradual logo à partida. O princípio orientador será então a análise pormenorizada do jornal, a sua evolução ao longo dos anos e as respectivas secções informativas. Após uma análise quantitativa destes jornais dever-se-á avançar para uma análise qualitativa. Não basta apenas contabilizar o número de mudanças que se procedem nestes meios de comunicação na última geração, é igualmente imprescindível analisar de que forma o seu conteúdo assume divergências de dentro para fora do jornal. O autor destaca, com certo sentido avaliativo, o maior ou menor teor de sensacionalismo destes periódicos. Não nos esqueçamos que um dos tópicos exemplificativos que Weber enunciou foi a relação divergente que os públicos francês e americano tinham para com os seus jornais. O maior ou menor grau de emoção é um dos pontos fundamentais da investigação, na medida em que esclarecem a predisposição dos diferentes povos para com a imprensa e a forma como vêem a sua sociedade.
Estando estas metas alcançadas, o sociólogo terá enfim as ferramentas que lhe permitirão alcançar novas questões, mais essenciais, e cuja obtenção das suas respostas é o verdadeiro fim de todo este processo.
Um projecto como este não pode deixar de ser quase inviável sem o interesse do objecto de estudo em questão. Objecto esse que, como o autor destaca, tornou-se membro vitalício da sociedade capitalista, crescendo mais no sentido de um companhia financeira, uma trust, do que propriamente como instituição destinada à informação e apenas a tal, criando em seu torno um conjunto de capitalistas: os “clientes” e os anunciantes. Numa época em que o seu poder não pode ser relegado, o seu estudo torna-se pertinente. Esta proposta destaca-se assim e acima de tudo como um ponto de partida para uma criação muito maior e para a compreensão de uma sociedade que deixou de se render simplesmente à maravilha dos discursos para se submeter à espectacularidade das discussões e do arrebatamento político, social e económico que os media tão bem exploram.
Por outro lado não deixa ao acaso aquilo que o público anseia por assistir, sendo necessário também investigar esse lado mais voyeur da assistência para compreender de que forma a imprensa se adapta a ele para o conseguir controlar ou, simplesmente, levar a acreditar de que realmente vê, ouve e lê o que deseja. Analisar as preferências de um público é um ponto essencial para compreender a formatação da sua imprensa, a sua agenda – setting e a sua concepção do que deve representar a imprensa no seu mundo.
É uma proposta interessante – sem dúvida! – e bem consciente do papel da imprensa, a sua natureza e as suas consequências. Está pois constatado que a elaboração de uma sociologia da imprensa é necessária não só para a compreensão da imprensa em si como também do seu público e, no passo mais adiante, do homem moderno, do homem social, do homem da comunicação.
Esta tese destaca, por fim, a importância da imprensa e a responsabilidade que nela assenta de gerir mentalidades. Alerta para o facto de a sua acção não poder ser livre de censuras e o seu desenvolvimento ausente de consequências. Ela existe enquanto quarto poder, aliou-se ao fenómeno financeiro, não podendo portanto agir indiscriminadamente. Uma sociologia da imprensa irá portanto permitir que se criam leis, regras que controlem o que, já por si, é um objecto de controlo, quer esta o ansiasse ou não. Em última análise, mais que não fosse para que existisse materialmente um estudo onde as questões acima enunciadas tivessem a sua resposta e ajudassem a coordenar os inevitáveis resultados provenientes da sociedade da informação.
Esclarecida a importância da imprensa e do seu estudo, resta agora que as questões sejam colocadas e que o trabalho inicie. A proposta pode ser muito básica e atacar somente pontos primordiais do debate em causa, mas trata-se de um início. As respostas que daqui surgirem permitirão, se bem encaminhadas, trazer novidades talvez mais perturbantes do que aquelas que julgamos e trarão, sem dúvida, os traços da imagem de uma sociedade cada vez mais estranha e arbitrária ao homem que nela habita: a sociedade da imprensa.

Na tua pele

Olho-te e vejo-me. Quem sou eu? Uma pergunta tão presente que quase nunca a articulo. Quando de ti tenho em mim, personagem quase sem rosto de tanto que ele se mistura com o teu. Que tens que a mim me pertence? Quanto de nós partilhamos? Acreditar que sou única por vezes é improvável. Sou um ser. Um conjunto de dois que outrora foi uno. Por isso, hoje, sinto-me contantemente na tua pele. Oiço os teus pensamentos, vejo as tuas memórias, sinto as tuas emoções. Sofro, algro-me, vivo contigo. E um dia, como será?


Como será quando chegar o dia da derradeira separação. Não, não quero pensar nisso! Mas penso. Eu sou assim: não consigo deixar de pensar. Pensar no que poderia ser e no que sou, sonhar com tudo o que está para vir e o que já passou. Pensar tendo-te a ti sempre presente na minha pele.

Pequena divagação sobre o tema "Etnias"

Etnias...

Querer ter bem mais do que se tem. Estranho... Em todas as nossas acções há uma pitada de orgulho, ainda que altruista. Pensar sobre etnias é pensar sobre um outro mundo que não o nosso. Especulação... Uma advinhação que não é nossa mas que faz parte do nosso pensamento. Pensar etnias é pensar nisso mesmo - no que o outro, diferente - estaria a pensar na mesma situação.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Cartas a um desconhecido XIII





Um dia que seja gostaria que voltasses a esta casa. Deixei tudo como estava, todos os elementos na mais perfeita harmonia perante a tua presença. Será um sinal de dependência? Em outros tempos quis acreditar que a tua sombra nada mais era que isso - uma sombra - mas aos pouco fui-me apercebendo que ia vivendo numa obsessão que tinha pouco de saudável e ainda menos de resposta. Estava só e como todas as pessoas sós deste mundo queria uma companhia, ainda que imaginária.



Foste-te embora e eu deixei que o desespero apanhasse um coração colado à tristeza. Hoje sei que perdi desta forma alguns dos melhores anos da minha vida. No entanto, quem me pode criticar? Sofri porque tinha que sofrer para tornar a viver! Não se deixa para trás um amor assim sem o seu devido luto. Não me arrependo. Que mais poderia fazer naquele estado?

sábado, 22 de setembro de 2007

Impacto Ambiental - Capitalismo




Gostaria de dizer umas quantas palavras: ao capitalismo. Se te amamos nos momentos de gozo, odiamos-te profundamente quando chega a crise, consegues ser amigo e inimigo no mesmo papel, amante e esposo na mesma encarnação, deus do sol e dos infernos no mesmo dia. Odio aquela dependência à qual o homem nunca consegue fugir. Odeio aquela dependência que, pior que a droga, retorna sempre à carteira anfintriã. Odeio o facto da sua existência ser a causa do declínio de tantas coisas que gosto.


Voltarmos a ser simples pessoas sem ganância é um sonho por demais longínquo. O mundo vai apodrecendo na sua própria evolução e progresso. Mas detestar este inimigo/amigo torna-se quase um pecado quando ele nos fornece o pão, a comodidade, a riqueza, ainda que apenas a uns pouco de nós todos. Houve quem defendesse que a pobreza, a igualdade chegasse a todos. Mas ninguém suporta essa existência. Pelo menos eternamente.


Basta assim rogar ao capitalismo que a ganância dos homens volte a retornar o que nos tirou. Nem sempre é possível e poucas vezes é fácil. Mas, pelo menos, neste nosso amigo existe flutuação. Talvez as ondas tornem a virar para o nosso lado...

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Simplicidade

Bem melhor é ter o mundo

que a possibilidade de não ter

assim quando este estiver perdido

posso recordar o seu sabor.



Em tempos possuí a crença

de um existência sem compaixão

hoje reconheço que a preserverança

é bem melhor que a solidão



Aos amigos que não conheço

rogo por um sinal de justiça

quero-os perto

quero-os comigo

quer ter sempre

quem me reconheça



amizade

ainda que de verdade

não se faz de palavras,

faz-se de gestos

de canções

de sonhos

promessas nunca quebradas

e pequenos doces de chocolate

partilhados entre todos

mesmo os que estão à parte





Não querendo ser singela

mas querendo-o ser também

na simplicidade das coisas

está o melhor

que o mundo tem

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Hino a Apolo

Olho à minha volta
E reconheço
Que o mundo que odeio
Também me moldou.

Na pele tenho as marcas
De um crescimento protegido,
Na mente tenho as cicatrizes
De um cérebro mutilado,
Nas mãos possuo a arte
Das artes criadas.

Apolo também definiu
A minha identidade.
E é na crueza das suas especialidades
Que eu me liberto
E digo,
Sem medo,
Que também estou viva
Para fazer vibrar
Bem alto
A minha voz.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Cartas a um desconhecido XII - Sombra

Entre as muitas coisas que tenho, sinto-me feliz por ter uma recordação tua. Pertence-me como um objecto pessoal, um batôn, uma roupa, algo que é só meu, que faz parte da minha personalidade e da qual não me posso desligar sem passar por um breve luto. Com os tempos fui-me apercebendo o quanto estás na minha memória, mas também o quanto te afastas-te da minha personalidade. Houve uma altura em que eras tudo. Hoje és pouco mais que nada. No entanto, continuo a venerar-te, a escrever-te e a aguardar uma resposta que reconheço que nunca virá. Pois bem, sou mulher de sonhos. Habito uma ilusão que me agrada e da qual não quero sair tão cedo. Mas tu já não és mais o meu tudo, já não és mais a minha alma. Pertences-me, fazes parte da minha identidade, não posso negar a tua existência, mas posso esquecer-me que aí habitas. Uma vez por outra vou lembrar-me de ti, que estás ali, com os teus cabelos castanhos e olhos escuros, mas já não será com aquela dor exacerbada, completamente nostálgica e perigosa por um bem que nunca chegou. Hoje consigo ser eu própria sem ter a tua sombra ao meu lado, constantemente, perenemente, eternamente ali!

papel de rascunho

grande mal
o desassossego
tem coisas
que a gente não vê
que depois de vistas -
diz o cego -
não há mais volta
que se lhe dê

fui criada longe
de coisas
do desassossego,
e agora que sou crescida
tremo de medo

ai quem me dera
voltar à minha infância
em que os horrores do desassossego
não passavam de ameaças
dos pais
dos avós
dos primos
dos vizinhos
mas nunca de nós
pobres pequeninos

queria ter como dantes
a ilusão da quietude
hoje vivo só
esperando que algo mude
e eu posso voltar
a ser
a menina do costume

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Inspirações

Letra Maiúscula; Antes da Vírgula - Numb

Sonds of birds
I´m here
I´m not invisible
I´m a being
Like you
Member of this land
That is yours
By bearn
By loyalty
By love…
Don´t forget me.

Je sais qui je suis
Naïve fille.
Mais je ne compris pas
Parce que je suis sole,
Une image
Dans le miroir

Cette maison n’est pas moi
Cette vie je ne voulais pas
Je suis sole
et
Je crois
Qui je veux mourir
Dans la même essence
Qui habite mon cœur:
La doloir.

Letra Maiúscula;Início da Frase

Nevoeiro... sinto-me triste...


Sair de casa em busca de um sonho. Ansiedade. Complementos de uma felicidade que se avizinha mas que não consigo pegar. Estar aqui dentro e querer partir, lá fora...


Nevoeiro...sinto-me só no meio da multidão...


Passo por rostos sombrios trajados de negro que fingem uma felicidade que não possuem. Abstracção de outra coisa que não é bem a realidade. É um sonho, uma utopia, um paraíso do qual ainda não provaram o fel.


Nevoeiro...arrepiu-me...


Esquecer que já fui outra pessoa à qual não não posso voltar. Esquecer um sem número de dores que está na altura de ultrapassar. Aprender a viver quando é tão difícil acreditar... Querer ser também nevoeiro para me poder dissipar, desaparecer e procurar noutro lugar uma existência diferente desta.


É dia de nevoeiro. Voltamos a começar!

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Aos ignorantes

Não ter paciência para ler ou para escutar é um defeito. Quando falo em ler não me refiro a livros ou a estudas, mas pura e simplesmente a uma notícia num jornal. O lead pelo menos convém saber. Não que por tal fiquemos mais lúcidos sobre o presente, mas sim para ficarmos mais lúcidos quanto ao que nos rodeia.
Balzac e a pequena costureira aventuraram-se no mundo da leitura numa época em que tal era proibido. Foram, por isso, influenciados por ela, numa época em que não podiam ter ideias. Hoje podemos. Custa assim tanto procurar uma?

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Impacto Ambiental - Balzac e a Pequena Costureira Chinesa

Balzac

Cartas a um Desconhecido XI - Perfeição

Lembro-me de ti...
Como não me poderia lembrar? Naqueles dias em que entravas, de mansinho, pela minha porta e me dizias as coisas que eu sempre sonhara ouvir. Lembro-me de ti como nos lembramos de uma promessa. As palavras que ficaram por dizer, os sorrisos que ficaram por traçar, os sonhos que me recusei a esquecer.
Noutros tempos recusei a lembrança. Hoje, só, não posso deixar de constatar que, na minha memória, nunca desapareceste. És uma sombra, uma imagem dilatada do que realmente foste, mas continuas presente, continuas a fazer-me companhia. Nas horas boas e más, mas, hoje, sem defeitos - apenas guardei as tuas qualidades. Quando estavas presente, por vezes, odiava-te. Hoje reconheço que anseio por esses pequenos traços de personalidade vincada em desformidade. Agradeço assim todas as tuas faculdades de alegria, todas as tuas palavras de conforto e uam companhia que, sei-o, nunca voltarei a gozar em toda a plenitude.

Mas...estranhamente... não me importo! Porque me haveria de importar. A tua imagem é-me muito mais bela agora do que quando estavas comigo. Conservo de ti o melhor da tua presença e esqueço o que me desagradava, o que me corruia. Hoje, és perfeito. E que bela é a Perfeição!!!!

sábado, 28 de julho de 2007

Crentes

Crentes...
tão perto e tão longe de possuirem o que desejam. Tão lúcidos e tão loucos nas suas conquistas. Tão audazes e tão surdos no que reivindicam. Crentes... De que serve a crença? Uma certeza tão forte que nos ajuda a viver? Um dogma tão sincero inpossível de contrariar? Uma forma de andar no mundo sem ter nada a temer.
Não gosto de crentes. Dizem o que acreditam e recusam-se a ouvir os outros. Dizem comprender, mas apenas compreendem a sua verdade. Dizem descobrir mas apenas redescobrem o que já tinham de seu.
Vou fechar os ouvidos aos crentes. Prefiro a minha própria realidade.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

No banco do jardim

Sabe tão bem

ser o primeiro

sabe tão bem

ser o último

sabe tão bem

o viver verdadeiro

sabe tão bem

viver de súbito



querer ter-te comigo

e não te ter

tens rosto fraco

sem delineação

no dia em que surgiste

apareceste

desmanchas-te

para sempre

o meu coração



ser humana tem destas coisas

ser

por não ser

ao manifesto

eu

que quero ser

todas as coisas

sonho

por ser

segredo honesto



no dia em que morrer

voltarei

e viverei

tudo o que não vivi.

no dia em que morrer

saberei

que tive tudo

o que sempre quis



a beleza

de ter-te

a ti

sexta-feira, 6 de julho de 2007

A lebre e a tartaruga

Criticam-me.
Aprendi a fechar os ouvidos.
Sentimentos cruéis
Feridos
Afloram-me ao coração.
Criticam-me...

Porque cresce como cresce
Uma fúria impensada
De um odor
Profundo
Absurdo
Impuro
Inesperado?
Rasgo desta crueldade que não consigo esbater
Retirar do meu querer
Enfrentar
E derrotar.

Quero picar
- assim, bem picadinha –
esta minha fotografia.
Sorriso idiota!
Meu Deus, porque te comportas
De forma tão estúpida?!
Muda
Sem voz
Atroz
Maledicente...

Mente!
Por favor, mente!
Não digas que estás carente
E volta ao fingimento,
Adorado fingimento,
De que és tudo
E coisa nenhuma
Absurdo de existência
De um ser caprichoso
E odioso
- Uma bruxa!
Daquelas com caldeirão
Sem coração
E um livro de feitiços.

Por favor:
Transformem-me numa tartaruga
E não me deixem a lebre adormecer!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Renascença

Que caminho é este, minha Mãe,
Que visiono na minha frente?
Nas costas já carreguei
Todo o peso do Mundo,
Porém ainda estou perdido
Em ilusões de abundância
De um sonho que nunca virá!

Que caminho é este, minha Mãe,
Para onde já não sei como caminhar?
Dos amai-vos uns aos outros que Ele nos ensinou
Já não sei como rezar!
Fruto do ódio dos homens,
Morri sem vontade de amar!

Que caminho é este, minha Mãe,
Que nas mãos já me brotam os calos da inchada de chumbo
E da terra que não soube lavrar?
Meus pés sangram, meus olhos se fecham,
Minha pele se enruga, minha voz se ressente
E eu não consigo mais procurar...

Contudo, nas páginas do Livro,
Encontrei por fim este caminho,
E com ou sem alma destroçada
Sei já qual terá sido o meu destino
E quero entregar-te a ti, mãe, todo o amor
Que porventura ainda carregue no meu coração!

Quero, contigo Mãe, oferecer
Minha vida
Para ser o caminho de amor
Que meus irmãos
Necessitam

Quero dar as mãos,
Quero ver a cor da vida,
E se na cruz ainda sobrarem dez pedaços da minha carne
Aos abutres os recomendo,
Pois dela agora brotam
Dez sinais de esperança para o Mundo
Que em tempos quis construir

O Sótão - trecho

Os três irmãos permaneceram ali até a chuva diminuir e a lua voltar a brilhar. O sol nasceu, o vento parou, a aurora surgia em todo o seu esplendor e alegria. Tinha sido o fim, o fim de tudo, o fim de todos. O dia amanheceu uma vez mais, anunciando um novo recomeçar. Uma vida que cresceria a partir dali, daquele momento. Uma ânsia de felicidade que acompanhava uma doce paz. Uma paz que a tudo abrilhantava e concedia uma segunda oportunidade para recomeçar. Tê-lo-ia dito, aos três irmãos, aquele Deus a quem Ricardo falara, mas teriam que descobri-lo por si próprios através das suas próprias decisões. Cresceriam, envelheceriam e acabariam por concluir que tudo tivera o seu fim devido. E que Rosa estava onde sempre quisera estar: em paz.
Oh, lágrimas, envolvestes aqueles primeiros dias e a todos martirizastes com o teu sofrimento. Esquecimento! Nunca tal sucederia! Eram a família Melo e recomeçariam um novo dia. Uma, outra e outra vez. O povo, esse apenas aplaudiu. Não a triste sorte de Rosa, mas o fim do seu medo. Quanto ao relógio da torre, deixou-se suicidar e nunca mais ninguém ouviu o seu medonho toque…

O Tear das Moiras - trecho

“Mirina, minha cara, quantas histórias te poderia contar!... Se para os outros fostes rainha, princesa, talvez mesmo Afrodite na tua beleza, para mim representaste a segurança que nunca encontrei em mais ninguém. Tinhas o rosto de uma boneca e um brilho de andarilho que eram só teus. Eras exemplar na tua candura e felicidade, mas sabias ser fiel a ti mesma e aos outros, defensora da lei, crente na justiça, amiga do servo que a ti se ajoelhava pedindo pão. Enquanto viveste soubeste ter nas tuas mãos o teu próprio destino e desdenhaste quem to quis comprar, quem to quis comandar. Riste-te na cara de mais que um pretendente, não tiveste receio de te declarar independente do mundo e nunca ninguém te conseguiu domar. Foste mãe, pai, filha, irmã, esposa e empregada. Foste tu, só tu, e o que quiseste mais ser. Apagaste do zumbido a repressão do teu nome. Amaste como uma louca o que não podias amar, viveste como poucos tudo quanto tinhas a viver. Não renegues quem és, não percas essa tua marca. Olha para ti e procura descobrir – te. És muito mais que uma mera imagem no espelho!”

Esperança I - Gustav Klimt

Poucos são os quadros de Gustav Klimt que efectivamente têm uma história, mas este é sem dúvida um deles. Pintado a óleo sobre tela, em 1903, está hoje exposto em Otawa, na National Gallery of Canada. Até chegar aqui, e desde a sua criação, a obra teve um longo percurso e uma motivação deveras original. Ao pintar uma mulher grávida e nua Klimt sabia que ia contra um dos maiores tabus da conservadora sociedade vienense. Este era, de facto, um tema raras vezes representado pela arte: a gravidez, passo que antecede a maternidade em si e resultado da experiência sexual. Por tal, apesar de o quadro estar terminado em 1903, não foi imediatamente exposto. Mas comecemos pelo início.
São conhecidos os diversos boatos sobre a vida de devassidão de Gustav Klimt, nomeadamente em relação às mulheres dos seus retratos que, em grande parte, surgiam nuas e em poses de teor erótico. Sabe-se no entanto, e apesar de dois dos seus filhos legitimados serem de uma destas modelos, que ele as respeitava profundamente, chegando mesmo a custear as suas despesas mais sérias desde que continuassem a trabalhar para si. Estas raparigas, a maioria advindas de famílias com dificuldades económicas, acabavam desta forma por se tornarem dependentes dele economicamente, estando sempre à disposição quando eram chamadas. Note-se que o interesse do artista residia pura e simplesmente no aspecto físico, nas formas corporais que retratava nas suas obras, facto que leva ao desconhecimento de praticamente todas as modelos de Klimt. Herma, de quem se sabe apenas o nome próprio, é por tal uma excepção.
Sabe-se que esta jovem, de quem o pintor dizia que o «traseiro era mais belo e inteligente que a face de muitas outras», desapareceu subitamente, situação que deixou o artista preocupado. Ao procurá-la descobriu que Herma se encontrava grávida, não estando portanto em condições de continuar o seu trabalho. Não obstante, Klimt esforçou-se por a fazer regressar, nascendo assim o primeiro quadro intitulado Esperança.
Só ao fim de alguns anos o quadro foi finalmente exposto, resultado da prudência de Klimt em não renovar logo em 1903 a polémica de Os Quadros das Faculdades. A obra foi rapidamente adquirida por Fritz Warndorfer, co – fundador do atelier vienense, que a colocou numa moldura com fechadura para todos a poderem apreciar sem cobiça. Entre 1907 e 1908, Klimt voltaria ao mesmo tema com Esperança II, desta vez num tom mais brilhante e pacífico e de profunda densidade psicológica.
A Esperança I traz um pouco dos mesmos elementos que fazem parte das Serpentes de Água I. As diferentes texturas e cores subdividem a realidade em diferentes planos, conferindo à imagem da protagonista em estado de graça certa tridimensionalidade que não é muito natural em Klimt. O esbatimento das cores do corpo da jovem, construindo diferentes texturas, ajuda a esse efeito, não se observando as linhas de contorno. Por tal a personagem olha para o mundo com desafio, querendo sair da tela, ao mesmo tempo que inclina as mãos sobre o ventre em sinal de espera. É das imagens mais belas do autor e provavelmente uma das que mais se destaca da sua técnica pessoal secessionista com um tema claramente inovador. Esta mulher, de longos cabelos vermelhos, invocando a mesma sensualidade presente em Dánae, e embelezada com uma coroa de flores, quase como uma noiva, olha o mundo e aguarda. Que pensamentos a afligirão?
Ultrapassando os diferentes planos que se sobrepõem, quase como véus que a circundam, surge um ser marinho agoniante, de soberba cabeça e largo tamanho, que, a par dos olhos desconfiados e intensos da jovem, confere tensão ao quadro. A forma como se serpenteia em torno da protagonista e coloca os seus olhos ao mesmo nível que os da rapariga, e com a mesma frontalidade, dá arrepios, desconforta, amedronta. A curvatura das linhas é, mais uma vez, aqui promotora de tensão, entrando em conflito com a pacificidade branca e pura do ventre que vai crescendo com uma nova vida. Cheguei por mim à conclusão que o bicho, semelhante a uma espécie de girino mas também a um espermatozóide, é o símbolo masculino que completa a origem da vida. Homem e mulher estão portanto presentes, ainda que o segundo mais ou menos metamorfoseado.
Não utilizei o termo «bicho» por leviandade. O homem nas obras de Klimt poucas vezes ou nenhumas assume a mesma distinção que a mulher, ainda que esta não escape também, por vezes, à conspurcação. Quase que como se o resultado da infâmia da mulher resultasse da animalidade do homem, do seu enleio e arrogância. Assim, ele é visto como um ser hediondo, tenebroso, negro, que ronda a mulher, sedu-la, mas depois a deixa sozinha na espera. É um novo sentido ao nome Esperança. Esperança numa vinda e esperança num regresso.
Ao mesmo tempo a mulher não parece amedrontada pelas figuras que a rodeiam. Também ela contribuiu para o seu estado, também ela nos olha sem receio, numa expressão dura e pouco maternal. Será mais em gesto de desafio. Desafia-nos a julgá-la, a perturbá-la, a ameaçá-la. Desafia todos os que a circundam: o homem/bicho que a consumiu; a morte em forma de caveira; a dor que surge, escondida, por trás da morte, anunciando que uma não existe sem a outra; o vício, deformado, que leva à destruição do corpo e da alma; a doença, ao lado da morte, pálida, desalentada, sempre presente. E, ao mesmo tempo que parece enfrentar tudo e todos, olha para nós, a sociedade, e enfrenta-nos também. Teremos nós a ousadia de perturbar a sua espera? Não há nada de vergonhoso na sua condição! Ela é um elemento natural na mulher, faz parte dela, e a jovem tudo fará para que não a perturbem.
A imagem é portanto bastante inquietante. Apesar de todo o corpo, proporcionalmente perfeito, anunciar o tal “estado de graça” em que a protagonista se encontra, o seu rosto é muito pouco maternal. Parece mais em acto defensivo enquanto toda a sua fisionomia se condiciona a uma espera. Por outro lado, a voluptuosidade dos cabelos ruivos e o ser negro que a rodeia transfere a nossa mente rapidamente para a relação sexual, causa da tal esperança. O quadro é a síntese da nossa origem e dos males aos quais estamos expostos pela simples razão da existência. A pintura é então, ao contrário do tema que encerra, da gravidez, pouco feliz.
Chegamos à conclusão então que esta é a reflexão sobre a origem da vida humana. Homem e mulher – ela ser branco e puro, ele ser negro e hediondo – que do acto amoroso fazem nascer um novo ser. O novo ser que, em circunstâncias mais dúbias, acalenta os ódios da sociedade e expõe os males da humanidade. Talvez a jovem até seja solteira – a coroa denuncia uma noiva, não uma mulher já casada. Mas também ela tem direito à esperança, ao seu orgulho. E ela não parece ter receio de ninguém.
Há uma certa paragem no tempo. O quadro em si não possui grande temporalidade, mas apercebemo-nos que conta uma história e pára em determinado ponto entre o passado e o futuro. Como disse anteriormente é a síntese de uma história enquadrada num determinado instante. E apesar de não ser um instante feliz e os elementos em choque produzirem certa tensão, há beleza nas formas da mulher, na sua condição e no plano arroxeado que a parece separar do monstro marinho. Provavelmente simples ornamentação, os pequenos pontos e formas geométricas em sequência transmitem movimento, harmonia. No meio do desespero há sempre espaço para um tempo de esperança.
Ainda como destaque, uma característica proeminente na obra. Feita num formato de 189 x 67 cm, este é um retrato que se impõe pela sua grandeza, em dimensão humana. A mensagem fica então distinta e a condição física da mulher aos olhos de todos os que a queiram admirar ou julgar. O corpo, aqui sem nenhum teor propriamente erótico, é a manifestação da condição da própria mulher enquanto mãe, enquanto albergue da humanidade. Albergue esse que talvez traga uma nova esperança ao mundo soturno que vem habitar. Não há pois que ter vergonha.