quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A Norte a Chuva Parou (b)

De tudo quanto possuia, tinha consciência que a profissão, o estatuto, era o mais valioso. Mas não numa perspectiva de importância a nível da carreira, de destaque perante os outros ou de possuir um poder que mais ninguém obtinha. A importância, a validade, estava nas pequenas coisas que, dia a dia, ia conquistando na sua ausência para com a relatividade do mundo. Sim, tudo era passageiro, finito. Num dia vives, no outro morres. Mas gostava de apreciar o recosto confortável do seu cadeirão, a madeira lisa e fria da sua secretária, a sua sala quente e acolhedora nas manhãs de inverno, no pico de Janeiro. A empregada que lhe trazia um café a ferver e o computador que lhe abria caminhos a um novo mundo. Um mundo onde todas as suas ilusões e devaneios se imprimiam num conjunto inacabado e confuso de caracteres.

Ela escrevia. Uma escrita do tipo de escritor psicótico à beira do suicídio, que transporta para o papel todos os devaneios que, com ou pouca lógica, lhe vão atravessando o pensamento. Ela era como eles, os seus personagens, que ignorando o mundo em que viviam - sem interesse, sem história - encontravam no além uma existência bem mais praseirosa e que resultava, sobretudo, da imaginação.

Doces momentosa aqueles! Quando ela passava tardes a fio fechada sobre si, aconchegada na sua superioridade e importância de não poder ser interrompida enquanto fazia outro trabalho que não era o que lhe competia. A chuva na rua, tempestade de vento, folhas, agitação nervosa dos passantes, um torbilhão de rotinas e acidentes que volviam o mundo do avesso, enquanto ela escrevia.


«O pequeno Tomás corria sem descanso na enconta encarpada. Caiu e morreu. Partiu para o céu. E finalmente foi feliz».