Poucos são os quadros de Gustav Klimt que efectivamente têm uma história, mas este é sem dúvida um deles. Pintado a óleo sobre tela, em 1903, está hoje exposto em Otawa, na National Gallery of Canada. Até chegar aqui, e desde a sua criação, a obra teve um longo percurso e uma motivação deveras original. Ao pintar uma mulher grávida e nua Klimt sabia que ia contra um dos maiores tabus da conservadora sociedade vienense. Este era, de facto, um tema raras vezes representado pela arte: a gravidez, passo que antecede a maternidade em si e resultado da experiência sexual. Por tal, apesar de o quadro estar terminado em 1903, não foi imediatamente exposto. Mas comecemos pelo início.
São conhecidos os diversos boatos sobre a vida de devassidão de Gustav Klimt, nomeadamente em relação às mulheres dos seus retratos que, em grande parte, surgiam nuas e em poses de teor erótico. Sabe-se no entanto, e apesar de dois dos seus filhos legitimados serem de uma destas modelos, que ele as respeitava profundamente, chegando mesmo a custear as suas despesas mais sérias desde que continuassem a trabalhar para si. Estas raparigas, a maioria advindas de famílias com dificuldades económicas, acabavam desta forma por se tornarem dependentes dele economicamente, estando sempre à disposição quando eram chamadas. Note-se que o interesse do artista residia pura e simplesmente no aspecto físico, nas formas corporais que retratava nas suas obras, facto que leva ao desconhecimento de praticamente todas as modelos de Klimt. Herma, de quem se sabe apenas o nome próprio, é por tal uma excepção.
Sabe-se que esta jovem, de quem o pintor dizia que o «traseiro era mais belo e inteligente que a face de muitas outras», desapareceu subitamente, situação que deixou o artista preocupado. Ao procurá-la descobriu que Herma se encontrava grávida, não estando portanto em condições de continuar o seu trabalho. Não obstante, Klimt esforçou-se por a fazer regressar, nascendo assim o primeiro quadro intitulado Esperança.
Só ao fim de alguns anos o quadro foi finalmente exposto, resultado da prudência de Klimt em não renovar logo em 1903 a polémica de Os Quadros das Faculdades. A obra foi rapidamente adquirida por Fritz Warndorfer, co – fundador do atelier vienense, que a colocou numa moldura com fechadura para todos a poderem apreciar sem cobiça. Entre 1907 e 1908, Klimt voltaria ao mesmo tema com Esperança II, desta vez num tom mais brilhante e pacífico e de profunda densidade psicológica.
A Esperança I traz um pouco dos mesmos elementos que fazem parte das Serpentes de Água I. As diferentes texturas e cores subdividem a realidade em diferentes planos, conferindo à imagem da protagonista em estado de graça certa tridimensionalidade que não é muito natural em Klimt. O esbatimento das cores do corpo da jovem, construindo diferentes texturas, ajuda a esse efeito, não se observando as linhas de contorno. Por tal a personagem olha para o mundo com desafio, querendo sair da tela, ao mesmo tempo que inclina as mãos sobre o ventre em sinal de espera. É das imagens mais belas do autor e provavelmente uma das que mais se destaca da sua técnica pessoal secessionista com um tema claramente inovador. Esta mulher, de longos cabelos vermelhos, invocando a mesma sensualidade presente em Dánae, e embelezada com uma coroa de flores, quase como uma noiva, olha o mundo e aguarda. Que pensamentos a afligirão?
Ultrapassando os diferentes planos que se sobrepõem, quase como véus que a circundam, surge um ser marinho agoniante, de soberba cabeça e largo tamanho, que, a par dos olhos desconfiados e intensos da jovem, confere tensão ao quadro. A forma como se serpenteia em torno da protagonista e coloca os seus olhos ao mesmo nível que os da rapariga, e com a mesma frontalidade, dá arrepios, desconforta, amedronta. A curvatura das linhas é, mais uma vez, aqui promotora de tensão, entrando em conflito com a pacificidade branca e pura do ventre que vai crescendo com uma nova vida. Cheguei por mim à conclusão que o bicho, semelhante a uma espécie de girino mas também a um espermatozóide, é o símbolo masculino que completa a origem da vida. Homem e mulher estão portanto presentes, ainda que o segundo mais ou menos metamorfoseado.
Não utilizei o termo «bicho» por leviandade. O homem nas obras de Klimt poucas vezes ou nenhumas assume a mesma distinção que a mulher, ainda que esta não escape também, por vezes, à conspurcação. Quase que como se o resultado da infâmia da mulher resultasse da animalidade do homem, do seu enleio e arrogância. Assim, ele é visto como um ser hediondo, tenebroso, negro, que ronda a mulher, sedu-la, mas depois a deixa sozinha na espera. É um novo sentido ao nome Esperança. Esperança numa vinda e esperança num regresso.
Ao mesmo tempo a mulher não parece amedrontada pelas figuras que a rodeiam. Também ela contribuiu para o seu estado, também ela nos olha sem receio, numa expressão dura e pouco maternal. Será mais em gesto de desafio. Desafia-nos a julgá-la, a perturbá-la, a ameaçá-la. Desafia todos os que a circundam: o homem/bicho que a consumiu; a morte em forma de caveira; a dor que surge, escondida, por trás da morte, anunciando que uma não existe sem a outra; o vício, deformado, que leva à destruição do corpo e da alma; a doença, ao lado da morte, pálida, desalentada, sempre presente. E, ao mesmo tempo que parece enfrentar tudo e todos, olha para nós, a sociedade, e enfrenta-nos também. Teremos nós a ousadia de perturbar a sua espera? Não há nada de vergonhoso na sua condição! Ela é um elemento natural na mulher, faz parte dela, e a jovem tudo fará para que não a perturbem.
A imagem é portanto bastante inquietante. Apesar de todo o corpo, proporcionalmente perfeito, anunciar o tal “estado de graça” em que a protagonista se encontra, o seu rosto é muito pouco maternal. Parece mais em acto defensivo enquanto toda a sua fisionomia se condiciona a uma espera. Por outro lado, a voluptuosidade dos cabelos ruivos e o ser negro que a rodeia transfere a nossa mente rapidamente para a relação sexual, causa da tal esperança. O quadro é a síntese da nossa origem e dos males aos quais estamos expostos pela simples razão da existência. A pintura é então, ao contrário do tema que encerra, da gravidez, pouco feliz.
Chegamos à conclusão então que esta é a reflexão sobre a origem da vida humana. Homem e mulher – ela ser branco e puro, ele ser negro e hediondo – que do acto amoroso fazem nascer um novo ser. O novo ser que, em circunstâncias mais dúbias, acalenta os ódios da sociedade e expõe os males da humanidade. Talvez a jovem até seja solteira – a coroa denuncia uma noiva, não uma mulher já casada. Mas também ela tem direito à esperança, ao seu orgulho. E ela não parece ter receio de ninguém.
Há uma certa paragem no tempo. O quadro em si não possui grande temporalidade, mas apercebemo-nos que conta uma história e pára em determinado ponto entre o passado e o futuro. Como disse anteriormente é a síntese de uma história enquadrada num determinado instante. E apesar de não ser um instante feliz e os elementos em choque produzirem certa tensão, há beleza nas formas da mulher, na sua condição e no plano arroxeado que a parece separar do monstro marinho. Provavelmente simples ornamentação, os pequenos pontos e formas geométricas em sequência transmitem movimento, harmonia. No meio do desespero há sempre espaço para um tempo de esperança.
Ainda como destaque, uma característica proeminente na obra. Feita num formato de 189 x 67 cm, este é um retrato que se impõe pela sua grandeza, em dimensão humana. A mensagem fica então distinta e a condição física da mulher aos olhos de todos os que a queiram admirar ou julgar. O corpo, aqui sem nenhum teor propriamente erótico, é a manifestação da condição da própria mulher enquanto mãe, enquanto albergue da humanidade. Albergue esse que talvez traga uma nova esperança ao mundo soturno que vem habitar. Não há pois que ter vergonha.
São conhecidos os diversos boatos sobre a vida de devassidão de Gustav Klimt, nomeadamente em relação às mulheres dos seus retratos que, em grande parte, surgiam nuas e em poses de teor erótico. Sabe-se no entanto, e apesar de dois dos seus filhos legitimados serem de uma destas modelos, que ele as respeitava profundamente, chegando mesmo a custear as suas despesas mais sérias desde que continuassem a trabalhar para si. Estas raparigas, a maioria advindas de famílias com dificuldades económicas, acabavam desta forma por se tornarem dependentes dele economicamente, estando sempre à disposição quando eram chamadas. Note-se que o interesse do artista residia pura e simplesmente no aspecto físico, nas formas corporais que retratava nas suas obras, facto que leva ao desconhecimento de praticamente todas as modelos de Klimt. Herma, de quem se sabe apenas o nome próprio, é por tal uma excepção.
Sabe-se que esta jovem, de quem o pintor dizia que o «traseiro era mais belo e inteligente que a face de muitas outras», desapareceu subitamente, situação que deixou o artista preocupado. Ao procurá-la descobriu que Herma se encontrava grávida, não estando portanto em condições de continuar o seu trabalho. Não obstante, Klimt esforçou-se por a fazer regressar, nascendo assim o primeiro quadro intitulado Esperança.
Só ao fim de alguns anos o quadro foi finalmente exposto, resultado da prudência de Klimt em não renovar logo em 1903 a polémica de Os Quadros das Faculdades. A obra foi rapidamente adquirida por Fritz Warndorfer, co – fundador do atelier vienense, que a colocou numa moldura com fechadura para todos a poderem apreciar sem cobiça. Entre 1907 e 1908, Klimt voltaria ao mesmo tema com Esperança II, desta vez num tom mais brilhante e pacífico e de profunda densidade psicológica.
A Esperança I traz um pouco dos mesmos elementos que fazem parte das Serpentes de Água I. As diferentes texturas e cores subdividem a realidade em diferentes planos, conferindo à imagem da protagonista em estado de graça certa tridimensionalidade que não é muito natural em Klimt. O esbatimento das cores do corpo da jovem, construindo diferentes texturas, ajuda a esse efeito, não se observando as linhas de contorno. Por tal a personagem olha para o mundo com desafio, querendo sair da tela, ao mesmo tempo que inclina as mãos sobre o ventre em sinal de espera. É das imagens mais belas do autor e provavelmente uma das que mais se destaca da sua técnica pessoal secessionista com um tema claramente inovador. Esta mulher, de longos cabelos vermelhos, invocando a mesma sensualidade presente em Dánae, e embelezada com uma coroa de flores, quase como uma noiva, olha o mundo e aguarda. Que pensamentos a afligirão?
Ultrapassando os diferentes planos que se sobrepõem, quase como véus que a circundam, surge um ser marinho agoniante, de soberba cabeça e largo tamanho, que, a par dos olhos desconfiados e intensos da jovem, confere tensão ao quadro. A forma como se serpenteia em torno da protagonista e coloca os seus olhos ao mesmo nível que os da rapariga, e com a mesma frontalidade, dá arrepios, desconforta, amedronta. A curvatura das linhas é, mais uma vez, aqui promotora de tensão, entrando em conflito com a pacificidade branca e pura do ventre que vai crescendo com uma nova vida. Cheguei por mim à conclusão que o bicho, semelhante a uma espécie de girino mas também a um espermatozóide, é o símbolo masculino que completa a origem da vida. Homem e mulher estão portanto presentes, ainda que o segundo mais ou menos metamorfoseado.
Não utilizei o termo «bicho» por leviandade. O homem nas obras de Klimt poucas vezes ou nenhumas assume a mesma distinção que a mulher, ainda que esta não escape também, por vezes, à conspurcação. Quase que como se o resultado da infâmia da mulher resultasse da animalidade do homem, do seu enleio e arrogância. Assim, ele é visto como um ser hediondo, tenebroso, negro, que ronda a mulher, sedu-la, mas depois a deixa sozinha na espera. É um novo sentido ao nome Esperança. Esperança numa vinda e esperança num regresso.
Ao mesmo tempo a mulher não parece amedrontada pelas figuras que a rodeiam. Também ela contribuiu para o seu estado, também ela nos olha sem receio, numa expressão dura e pouco maternal. Será mais em gesto de desafio. Desafia-nos a julgá-la, a perturbá-la, a ameaçá-la. Desafia todos os que a circundam: o homem/bicho que a consumiu; a morte em forma de caveira; a dor que surge, escondida, por trás da morte, anunciando que uma não existe sem a outra; o vício, deformado, que leva à destruição do corpo e da alma; a doença, ao lado da morte, pálida, desalentada, sempre presente. E, ao mesmo tempo que parece enfrentar tudo e todos, olha para nós, a sociedade, e enfrenta-nos também. Teremos nós a ousadia de perturbar a sua espera? Não há nada de vergonhoso na sua condição! Ela é um elemento natural na mulher, faz parte dela, e a jovem tudo fará para que não a perturbem.
A imagem é portanto bastante inquietante. Apesar de todo o corpo, proporcionalmente perfeito, anunciar o tal “estado de graça” em que a protagonista se encontra, o seu rosto é muito pouco maternal. Parece mais em acto defensivo enquanto toda a sua fisionomia se condiciona a uma espera. Por outro lado, a voluptuosidade dos cabelos ruivos e o ser negro que a rodeia transfere a nossa mente rapidamente para a relação sexual, causa da tal esperança. O quadro é a síntese da nossa origem e dos males aos quais estamos expostos pela simples razão da existência. A pintura é então, ao contrário do tema que encerra, da gravidez, pouco feliz.
Chegamos à conclusão então que esta é a reflexão sobre a origem da vida humana. Homem e mulher – ela ser branco e puro, ele ser negro e hediondo – que do acto amoroso fazem nascer um novo ser. O novo ser que, em circunstâncias mais dúbias, acalenta os ódios da sociedade e expõe os males da humanidade. Talvez a jovem até seja solteira – a coroa denuncia uma noiva, não uma mulher já casada. Mas também ela tem direito à esperança, ao seu orgulho. E ela não parece ter receio de ninguém.
Há uma certa paragem no tempo. O quadro em si não possui grande temporalidade, mas apercebemo-nos que conta uma história e pára em determinado ponto entre o passado e o futuro. Como disse anteriormente é a síntese de uma história enquadrada num determinado instante. E apesar de não ser um instante feliz e os elementos em choque produzirem certa tensão, há beleza nas formas da mulher, na sua condição e no plano arroxeado que a parece separar do monstro marinho. Provavelmente simples ornamentação, os pequenos pontos e formas geométricas em sequência transmitem movimento, harmonia. No meio do desespero há sempre espaço para um tempo de esperança.
Ainda como destaque, uma característica proeminente na obra. Feita num formato de 189 x 67 cm, este é um retrato que se impõe pela sua grandeza, em dimensão humana. A mensagem fica então distinta e a condição física da mulher aos olhos de todos os que a queiram admirar ou julgar. O corpo, aqui sem nenhum teor propriamente erótico, é a manifestação da condição da própria mulher enquanto mãe, enquanto albergue da humanidade. Albergue esse que talvez traga uma nova esperança ao mundo soturno que vem habitar. Não há pois que ter vergonha.
2 comentários:
Muito cuidado ao CHUPINHAR um texto de um livro. Eu tenho este em maos neste momento, e nao foi o 'pintor' que disse «traseiro era mais belo e inteligente que a face de muitas outras», e sim (arthur) Roessler, um crítico de arte!
Já não me recordo de onde tirei a citação, julgo até que fui comparando várias obras para criar este texto, que teve outro objectivo bem diferente do deste blogue. Não sei a que livro te referes e se efectivamente errei na citação não foi por anda a CHUPINHAR mas porque realmente entendi que seria uma frase de Klimt, até porque no que toca a citações e afirmações do género procuro sempre ter a máxima atenção para, exactamente, não fazer erros destes. Se o fiz, foi realmente lamentável...
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