terça-feira, 3 de julho de 2007

O Novo Evangelho dos Génesis


Nem só de dinheiro vive o homem! Compreendê-lo torna-se mais complicado do que se julga. No altar, o prior remata: «Nem só de pão vive o homem»! Compreendemo-lo? Não sei. Depende da nossa disposição, do estado da nossa alma, se a novela no dia anterior terminou ou não de forma tempestuosa, se o jogo de futebol teve ou não um remate fabuloso, se a namorada ou o namorado deixaram que os nossos desejos fossem mais além da intenção. Nem só de dinheiro e de pão vive o homem… De que viverá ele então?
O homem possui um complemento que vem buscando desde a antiguidade clássica. Sócrates chamava-lhe o amor à sabedoria; entre nós ficou conhecido por filosofia. Mas em Coimbra não se procura só as letras. À cidade do conhecimento acorrem os matemáticos, os engenheiros, os médicos, os professores, os cientistas, os investigadores. A sua localização é dispersa, espalham-se pelo centro e arredores, mas todos procuram um só lugar: a universidade.
Se em outros tempos o local era dominado pela descendência masculina das grandes casas portuguesas e brasileiras, hoje a situação inverteu-se. Quem procura homens enganou-se no caminho (ou mesmo no século). As jovens moças, já não tão castas e recatadas como as suas tradicionais Evas, aventuram-se pelos caminhos do conhecimento, das artes e das letras, encontrando um amor que não está somente reservado a Adão. Vivem sozinhas ou em conjunto, trazem os namorados, colegas ou maridos, num apartamento, numa casa, cozinhando, trabalhando, limpando, estudando. Mas existem aquelas que, não esquecendo o que foram ou mesmo o que são, ansiando por uma tranquilidade que as repúblicas não transmitem, procuram as casas de religiosas, com as suas regras mais ou menos rígidas, as suas tradições mais ou menos perenes, os seus dogmas mais ou menos aceites.
Em Coimbra existem várias. Procurando uma especial encontramos o Lar Teresiano, mesmo ao lado do Convento das Carmelitas (lugar de culto não apenas a Deus mas a uma santa, Lúcia Marto, que aí passou os seus últimos anos de vida), grande casa pintada de tons creme, lembrando tecidos de vestido de noiva, recatada no seu aconchego, ladeada por jardins, pequenos quintais e casas senhoris, habitações dos notáveis da cidade. Vivem aí cerca de 50 raparigas. De caloiras a veteranas, compartilham o dia a dia dos estudos, das refeições a horas, da rotina das aulas e das saídas nocturnas (programadas com antecedência e aviso para não haver problemas com as religiosas). Quem por ali passa vê uma casa tradicional, de telha vermelha e aspecto asseado, brancura imaculado de cuidado e empenho nas aparências. Curiosidade? Bastante. Todos têm curiosidade de entrar, ver e criticar, ou mesmo surpreender-se com as mutações do tempo.
«Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas não podes comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com certeza morrerás» – disse Deus a Adão. Mas Eva, a mulher, mãe dos homens, enganada pela serpente, quis experimentar esse conhecimento e compartilhou-o com o marido. Deus amaldiçoou-a: «Vou fazer-te sofrer muito na tua gravidez: entre dores, darás à luz os teus filhos; a paixão vai arrastar-te para o marido, e ele te dominará».
- A Bíblia precisa de ser actualizada! – comenta a rapariga da sala de estudo, morena, olhos escuros, de auriculares nos ouvidos e livros médicos na frente. Olhos penetrantes, perscruta o conhecimento sobre a vida e a morte que o homem vem redescobrindo desde a saída do Éden. No quinto ano do curso de medicina as dúvidas acumulam-se, as responsabilidades aumentam, o estudo é eterno e nunca reconciliador com os textos da antiguidade.
A sala, logo à entrada do Lar Teresiano, acolhe um ar pesado, de introspecção, acalentado pelo soalho encerado e as portas e o tecto de madeira. Das paredes pintadas de branco, prateleiras repletas de livros, clássicos, religiosos, universais, adornam sem emoção um sentimento de repressão, angústia, nervosismo ansioso que busca, na maioria das vezes, muito mais a fixação que a aprendizagem. Em época de exames, as jovens centram-se nesse espaço, cobrem as várias mesas com apontamentos, livros grossos, por estrear, canetas de feltro, marcadores, lápis, post-its e o empenho de quem quis ser muito mais que as suas mães e avós. Quem as pode culpar?
- Desde pequena que queria ser professora de História. Sei que não há emprego, mas era o que eu desejava…
A resignação dá lugar à esperança de um rosto risonho e fraterno. Por detrás de um exemplar resgatado do Paço do Conde, a futura professora perde-se entre os registos das entradas e saídas de um Recolhimento, casa de clausura para jovens moças do século XVIII. Mudam-se os tempos… Aquela outra casa de raparigas vai servir de tese de seminário.
- Será que um dia também vão escrever sobre nós?
Reescreve-se a história. No Lar Teresiano as paredes têm ouvidos, as escadas rangem e o sol não perturba o ambiente sóbrio e de recato. Das alcatifas cinzentas solta-se um cheiro a pó disperso. A madeira escura, de cerejeira, obscurece o espaço, torna-o pesado, lembra velhos palacetes de outrora. A luz esgueira-se por uma cortina fechada. Permanece o frio de um Verão abstracto, que permaneceu conceito nos fins de Junho. Um busto de Eça olha, penetrante, firme, perspicaz como sempre foi, para dois computadores inutilizados. Geração do amanhã, que busca o conhecimento e procura a novidade.
Sobem-se as escadas em silêncio. Espelhos do tamanho de pessoas reflectem a imagem dos visitantes. Concerta-se o cabelo, a roupa. Flores de beleza artificial enfeitam os corredores, palpitam de cor os andares soturnos, os átrios vazios, as janelas corridas. As jovens escondem-se nos quartos, individuais, estudando, reflectindo, sonhando ou dormindo. Chiu… Silêncio! Não se quer barulho. Estuda-se e mais nada. Dando-se a volta à casa vêem-se portas fechadas ou faces cansadas, brilhos apagados por um bem maior. A felicidade procura-se no conhecimento, na essência do mundo, nas palavras dos livros, nas folhas de prova e ritmos clássicos que, num ou noutro quarto, ressaltam ao surdo ouvido. Mozart… Schuman… Não! Lenny Kravitz!!
Uma leve brisa assalta o corpo, desprevenido, arrepiando a pele que apela ao Verão. Sentando-se nas escadas observa-se um lugar que respira o odor puro do chão acabado de lavar, da rugosidade dos tapetes que ocultam a poeira persistente, do cheiro a livro guardado, esquecido num canto do armário e por fim recuperado para dar uma nova visão à história. Perdeu-se a vida eterna! Ganhou-se a sabedoria, o discernimento entre o bem e o mal, o pecado original… Terá perdido tanto o mundo pelo pecado da mulher?
De uma sala ampla e pouco mobilada, uma mulher alta e altiva empenha um conjunto de livros e dirige-se às escadas que conduzem aos andares superiores. Saia abaixo do joelho, blusa branca abotoada até ao pescoço, casaco de lã a ocultar o que pouco ficou descoberto, meias escuras cobrindo as pernas finas, olhar firme, circunspecto, ciente do caminho que percorre e seguro das decisões tomadas. O véu ficou guardado em tradições menos rígidas e novos horizontes que a igreja se atreveu a percorrer nos últimos trinta anos. Calma. Dos seus passos, da sua voz e das suas palavras uma calma serena e quase irritante percorre as fibras de uma mente e uma pele habituada às cruezas e intransigências do mundo lá fora. Imagem em quase tudo semelhante às das outras freiras que coordenam e gerem o Lar Teresiano. Fio de prata ao pescoço com um pequeno crucifixo pendente, terço entre os dedos para mais uma hora de oração.
Procuram não interferir com a vida das “meninas” que habitam na casa, presas agora aos desígnios do calendário de exames. Mas, em casa de mulheres, as paredes têm ouvidos.
- Aquelas meninas estiveram na conversa até às duas da manhã. Isto não pode ser, havia pessoas a estudar.
- No fim-de-semana tivemos a impressão que entrou um rapaz aqui dentro.
- E daí?
- Não esteve só à porta, entrou num dos quartos!
- A Internet é para o uso nos estudos, não para copiar DVDs!
- Oh irmã, você já viu ao preço a que estão as coisas?!
Sussurros. As conversas funcionam em segredo. Memórias partilhadas dos tempos do secundário, das aventuras e peripécias da infância e da adolescência, do que o passado ainda insiste em impor e do que o futuro exige que permaneça no pensamento. Querer abrir a porta e sair mas ter que ficar. A campainha toca. Toca sempre. Ninguém tem a chave. Há sempre uma “irmã” para destrancar o trinco. Lá fora, o sol brilha.
- Quando terminar o curso vou casar. Quero ter pelo menos dois filhos…
- Casar?! Deus me livre! Acho que se ficasse grávida apanhava um trauma!
- Sou contra o aborto.
- Olha, eu sou a favor.
Volta-se aos livros, aos conceitos, às ideias. Por agora não se debate mais nada, não se sonha com o que se quer alcançar. A campainha toca. Fecha-se um caderno, abre-se outro. O desfolhar das páginas perturba a paz impregnada de stress, o lápis sublinha, mais uma vez, a frase maldita, o preconceito adquirido, mas brevemente esquecido, de que a totalidade das coisas se resume à junção de tantas outras. Economia, filosofia, anatomia. Gritos reprimidos abafam estojos revirados. Não se pensa no futuro, pensa-se no presente. Vão-se adiando planos, crenças de uma infância e de um tempo que hoje, trinta anos volvidos, parece estar perdido em outros séculos. Primeiro o conhecimento, depois a tradição.
Vive-se entre o céu e o inferno, entre o que se julga correcto e o que é dado como falso. Alimenta-se a alma, não mais restringida aos compromissos do lar e aos dogmas da igreja. Caminha-se para a emancipação, ainda que por entre as dores do parto e as paixões pelos homens. Mas não se crê – ah, não se crê mesmo mais! – que está na origem todos os males do mundo. Por mais que ainda se acolha o recato, as paredes continuam a ter ouvidos. Para as coisas aqui de dentro e para o mundo lá de fora.

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