quarta-feira, 4 de julho de 2007

No dia em que nasci

Página do diário de alguém que leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos no dia do seu vigésimo aniversário.

25 de Maio de 1988, Paris
Sou capaz de me sentir melindrada por muito, mas não por isto. Nascia naquele dia em que o mundo dava uma volta e morria na sua própria crueldade. Nascia quando os pássaros desistiram de cantar por já não encontrarem beleza alguma no que viam. Nascia quando a música de Mozart, de repente, perdia o ritmo, a sinfonia, e não ficava mais nada que um monte de folhas esquecido no cimo de uma mesa empoeirada. Nascia quando alguém dizia, mais uma vez, que certo dia tinha tido um sonho de igualdade e justiça no mundo. Nascia quando não sei bem quem morria por essa mesma igualdade e justiça. Nascia no dia em que o mundo caía e eu assistia, acabada de nascer, do meu berço de trapos.
Foi num certo dia de primavera que eu nasci. Não sei se fazia sol, nem tão pouco se chovia. Só sei que nasci nesse dia e desde então me questiono sobre a razão de tal facto. Não possuí nenhum talento, não ganhei qualquer medalha, não me destaquei em nada e não fui o orgulho de ninguém... Porque nasci então? Esse tal dia de verão parece ter então perdido a sua importância no calendário pois, ao olhá-lo, mais não vejo que dois números unidos para me fazerem envelhecer. Dia após dia.
Tive um amigo que me disse que não nascemos para morrer, nascemos para viver e para ver viver os outros. Eu nasci para ver viver os outros, não mais que isso. Os dias vão passando e na penumbra da minha janela pergunto-me o que estou aqui a fazer. Há mais no mundo que uma janela, contudo eu continuo junto dela à procura de um simples caminho, uma simples instrução de como abri-la e fugir. Nunca fiz nada, nunca sonhei nada, apenas vi os outros passarem ao meu lado sem muito mais o que fazer que ver os seus iguais passarem. São iguais a mim, no fundo sei-o. São a confirmação de que andamos todos aqui à procura do que o outro fez para sabermos o que temos que fazer. Passamos a vida a ver andar os outros... E, no final, o que fica? Fica a certeza de que fizemos algo pela vida!
Repito-me, eu sei. Sou pessoa de repetições. Não olho o que escrevo, olho o que faço e fico por aí. E já nada mais posso fazer. Nasci para estar aqui e pouco mais faço para além disso. Um dia a minha mãe disse-me que não podemos estar na vida a ver olhar os outros. Ela tem muito mais sentido, muito mais significado, muito mais importância que um simples olhar na nossa condição de mortais. Se o mundo acabasse amanhã o que levaria eu dela? A certeza de ter vivido? A certeza de ter respirado um ar, que já nem ar é com toda a poluição e químicos que andam por aí, matando-nos só pela simples condição de estarmos vivos. Se o mundo acabasse amanhã eu só poderia ter a certeza de uma coisa: a minha amiga Joana tem o cabelo castanho mas pinta-o constantemente de laranja; a senhora da mercearia chora ainda hoje o marido defunto numa guerra com 40 anos de distância; a minha irmã esconde desenhos de paisagens nas bordas das folhas dos cadernos; o meu primo Rui não tem namorada - tem namorado; a minha mãe faz renda duas horas por dia, faz o jantar às 8 e vê a novela ás 9; o meu pai dorme quatro horas por noite e trabalha 8 horas por dia; o André tem um boné do Benfica mas é do Sporting; a tia Matilde diz que é feliz mas chora sempre que o tio está em casa.Escreveria um livro com tudo isto? A minha janela tem o ferrolho consumido pela ferrugem. Na televisão não passa nada que a ilusão dos homens não faça acreditar. Na rádio oiço músicas cujas palavras desconheço. No dia em que nasci disse a Deus que me perdoasse, que não merecia viver num mundo assim. Ele respondeu-me que nascera para ver os outros passar. Ver porquê, porque não actuar? Porque assim serias diferente deles e nesse mundo em que agora habitas quem é diferente ou morre jovem ou nem sequer teve direito à vida.




in Via Latina 2007

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