quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Narrativas de Macau (7) o espaço da minha Audrey



Falemos agora um pouco sobre espaços. Pessoalmente, os meus locais favoritos costumam ser aqueles que, de alguma forma, me despertam algum significado pessoal ou que, com a sua decoração ou algum pormenor inaudito, conseguem mexer com a imaginação. Em sentido lato, aprecio sobretudo espaços abertos, daqueles que nos afagam o impulso de esticarmos os braços e nos estendermos ao comprido. Não tenho culpa, nasci na serra, e apesar de sempre ter sido muito caseira, uma das coisas que mais me estimulam a criação e o bem-estar é sentar-me na varanda da minha casa numa tarde de verão, logo depois do almoço, e observar ao fundo o castelo no cima do monte, quase um quadro medieval sobre um fundo azul.
Em quase todos os sítios por onde passei houve um determinado espaço que ou pela localização ou pela vivência permaneceram na minha memória e a eles regresso sempre que me é possível. Pois, mais que o conforto por se estar num sítio que nos toca, é aquele vibrar fortuito de uma história a germinar, o contorcer quase involuntário da criação que se apodera do cérebro e quase que do corpo. As palavras parecem brotar com mais facilidade, escrevem-se momentos quase de poesia e, pelo menos aquelas partes, acabam por se transformar nas linhas e parágrafos mais "saborosos" dos contos, das histórias, dos artigos ou de simples rascunhos que nunca chegam a ganhar corpo.
Em Portugal, gosto quando tenho que passar pelo santuário e sentir-me um ponto pequeno naquela imensidão que quase nos abraça ou nos quer abraçar. Gosto quando subimos ao castelo e passeamos pela vila debaixo de chuva. Gosto de me sentar nas escadas da faculdade de letras e ficar a observar o movimento ora apressado ora pachorrento dos meus colegas, de todas as nacionalidades. Gosto do claustro do instituto, agora já mais ajeitadinho, e de ver a chuva cair sobre ele nas tardes de inverno. Gosto de me debruçar sobre o rio nas noites de Queima e ver lá em cima a torre iluminada da universidade. Gosto de soltar o Piloto em dias de Primavera e juntos corrermos até ao pinhal, descobrindo sítios perdidos na mata, tão simples quanto encantados, pequenas recordações que despoletam as histórias dos contos de fadas que eu lia na biblioteca da escola ou, simplesmente, exercitações de um olhar cinéfilo, a querer transportar pelas páginas dos livros o impacto das cores da tela.
Em Macau ainda não consigo magicar histórias. Por muito que a percorra e tente compreender os momentos desta terra, ela ainda não é minha, ainda não construí nela uma casa. Já passei por situações boas e menos boas, já tive dias bons e dias maus, mas ainda não alcancei nenhum dos extremos. Por tal, mesmo que me encantem as casas portuguesas ou a fachada do Albergue da Santa Casa, o impacto da descoberta permanece na beleza das coisas e não no que elas me pudessem transmitir. É como se visse um filme lindíssimo e, no fim, apesar de ter gostado, não o compreendesse de todo. Mais ou menos aquela sensação que me ocorreu da primeira vez que vi o The Fountain. Adorei, simplesmente! Mas não percebi nada...
E essa é a maior frustração. Conhecer o lugar sem conseguir percorrê-lo mais a fundo. Adorar sentir o espaço do Largo do Senado às 5 da manhã, mas não conseguir ir além do agitar rebelde dos gatos que se escondem atrás dos canteiros. Observar as pessoas no seu dia a dia, na sua correria, e não conseguir entender porque correm, porque riem, porque choram sozinhas num canto isolado junto das ruínas...

Não obstante, existem espaços que me agradam e, apesar de ainda não terem nenhum significado especial para mim, encontro neles um sentido e uma agradável sensação de reconhecimento, uma primeira pontade de creatividade, a despontar. Um dos meus melhores passeios findou no Reservatório, um pequeno parque junto ao rio das Pérolas, num final de tarde, reconhecendo, ao longe, os jetfoiles que partiam para Hong Kong. Uma paz imensa, uma tranquilidade inexprimível depois de todo o reboliço que tinha apanhado pelas ruas e ruelas de Macau. E gosto dos jardins embrenhados no meio da cidade, também eles pequenas pérolas, onde as velhotes jogam um estranho xadrez, as crianças brincam e as mulheres percorrem em alegre monotonia. Gosto de encontrar recantos onde outros antes de mim estiveram, com mais ou menos história, gosto de me perder nas ruelas - aquela verdadeira China - de Macau. E gosto do espaço da minha Audrey...
As contigências desta minha vida por terras a Oriente levam-me a fazer as refeições fora de casa. Quando estou de folga, gosto de evitar o sítio costumeiro a que me habituei a dirigir e procuro  encontrar restaurantes diferentes, mais ou menos chineses, tailandeses ou afins, onde me possa misturar e conhecer essa variedade mestiça que é a terra do Santo Nome de Deus. Já encontrei algumas preciosidades, mas também alguns sítios que fariam tremer a ASAE da santa terrinha. E eu que me queixava das tascas de Coimbra...
Mas quando o restaurante do costume está fechado, gosto de ir visitar a Audrey. É chinês para turista ver e português só de referência. No entanto, a comida é boa e no meio de tanta misturada aquele caldo-verde com um leve sabor a picante deixa-me de rastos.
Com uma larga montra, deixa a luz entrar com facilidade, o que combina com a decoração em cores claras e "teens" e o design moderno. Numa das paredes, muito ao estilo da pop art, está esbatida a imagem da Audrey Hepburn, naquela versão cinematográfica romântica, e já clássica, do romance de Truman Capote, Breakfast at Tiffany's.
Ainda não percebi muito bem porque é que o lugar me cativa só pelo facto de olhar para a Audrey de cigarro na mão, com aquele olhar inocente e perdido, a pedir desesperadamente por auxílio ao mesmo tempo que diz não pertencer a ninguém. Talvez seja pela forma como me transporta para outras paragens, uma madrugada passada a observar uma montra duma rua de Manhattan. Ou mesmo o simples estilo travesso, de quem parece abstraida da realidade mas que, em verdade, observa tudo com muita atenção. E, claro, aquela imagem da beleza perfeita por ser tão imperfeita, a da jovem que parece não saber o que quer mas, no fundo, sabe-o com franqueza. Agrada-me, faz-me sentir uma estranha sensação de calma e, como em mais nenhum sítio ainda por aqui, faz-me querer mexer com a imaginação.
Gosto de locais que me transportem para a vida dos filmes e de filmes que me despertem o interesse para certos locais. Heaven, um dos meus filmes favoritos, deu-me a facada final assim que vi as imagens da Toscana. Ainda hoje consigo ver aquela comédia da Meg Ryan, French Kiss, só pelas imagens do sul de França. O Diamante de Sangue e o Fiel Jardineiro puseram África nos meus planos futuros. E depois, claro, Viena, que os passeios de Antes do Amanhecer ainda me arrebataram mais a imaginação. Macau também tem uma história semelhante, mas conta-la-ei noutra altura.
No final...gosto de espaços, gosto de locais, gosto de paisagens que me preencham o olhar e de espaços que me despertam a imaginação. Gosto da cena da longa planície que Henry Fonda enfrenta no O Meu Nome é Ninguém. Gosto de passear sozinha pela Nan Vam e recordar os contos de Senna Fernandes. Gosto de ir encontrar a Audrey ao fim da manhã e ir com ela até Nova Iorque. Mas gosto sobretudo de olhar pela janela e constatar que, finalmente, cheguei a Macau...


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