terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Uma cidade 24 horas


Mais uma reportagem realizada para a cadeira de Jornalismo Escrito II. A turma foi distribuída para cobrir os vários momentos da cidade de Coimbra ao longo do dia. Eu fiquei com a madrugada e segui um padeiro durante a distribuição de pão. Fica aqui o texto, para quem gostar de reportagens.


A Cidade (até ser dia)

Uma madrugada na padaria 

Ainda não bateram as seis. A cidade dorme, escondida nos seus prédios, nos seus cobertores, alheada dos que preparam a alvorada. Na padaria Tosta Rica, José Manuel já ligou o forno, retirou a massa da câmara do frio, depois de passada uma noite de levedura, e vai cozendo o pão com energia e despacho, provocando inveja ao espectador que o observa, ainda ensonado, ainda entorpecido pelos sons da noite. A lua vai descendo no firmamento, as nuvens vão dando lugar a pequenos rasgos de céu, que o sol ainda não alumia. Os postes de electricidade continuam ligados, uma coruja pia, ao longe, num tenebroso acordar. A limpeza já passou, os gatos trepam pelas varandas, vultos de sombras esgueiram-se pelas ruas. Uma solidão cortada pelo assobio de José Manuel que, sozinho, prepara as encomendas. Parece que o colega não vem trabalhar hoje!

Cheira a farinha e fermento, espalhados por todos os cantos da sala. Uma enorme batedeira despacha a massa que fará o pão para a venda ao público. Sacos e cestos acolhem croissants, pães de forma, parolos, pães de leites, broas, toda uma variedade de delícias, bem quentes, a abrirem o apetite. A divisão para a distribuição pelas diversas casas e residências tem que estar pronta às 6h30, hora a que chega o patrão. O padeiro que quis ser veterinário vai fazendo as contas: pães de carcaça – 900 por dia; pão integral – 100; parolos – 150… «Conforme os pedidos», comenta! Há 12 anos desistiu de estudar e dedicou-se ao forno e à farinha. Num espaço exíguo e repleto de máquinas, onde o calor está presente o ano todo, vai passando os seus dias. Arrasta cesto, arrasta tabuleiro, a massa no forno, o pão a cozer, as horas a passar, entregas organizadas, folhas assinadas. Só sai mais logo, às 17h. Mas nunca quis fazer outro horário.

O dia nasce quando o proprietário, o Sr. José, chega. José Manuel sai, atarefado, da cozinha e ajuda a encher a carrinha. O dono é um homem alto, entroncado, de cinquenta anos, cabelo grisalho e bigodes longos. Estava no serviço militar, ainda nas hostes da revolução de Abril, quando o pai morreu e lhe deixou a padaria. Criada em 1927 enquanto forno comunitário, conta 30 anos de padaria/pastelaria Tosta Rica. Nos primeiros tempos, a distribuição levava horas! Entrava-se para fabricar o pão à meia-noite e depois «fazia voltas enormes, com cerca de 100 km por dia», explica o Sr. José. Contudo, actualmente, chegou-se «a um ponto que não compensa». A «concorrência também aumentou muito» e, estando os alimentos a um preço tão elevado, tem clientes «que vão várias vezes por dia à padaria para comprar o mínimo» indispensável.

Faz-se à estrada, a cidade é dele! No início da manhã são poucos os que percorrem as ruas desertas e entregues apenas ao regozijo da bicharada. Quase sem trânsito ou outros impedimentos, as estradas são o palco dos que preparam a madrugada. Dois ou três táxis, carros de distribuição às portas dos quiosques, vagabundos da noite de regresso às suas camas, jovens em festa pelo dia que começa. O Sr. José comenta, a expressão séria e dura em desaprovação, os comportamentos tristes e desajustados dos estudantes nas alturas de festa da cidade. «Tanto lhes dá para dormir a um canto quanto para destruir», constata apontando para uma zona do passeio onde um sinal vandalizado foi retirado. Mas à excepção desses momentos de rebeldia, as viagens são tranquilas. Não encontra quase mais ninguém enquanto sobe e desce ruas, num pára/arranca quotidiano. Os clientes, hoje, são menos e mais restritos. Residências clericais para jovens, lares de idosos, alguns cafés e restaurantes. As estradas estão livres, a solidão quase total permite carregar no acelerador, exceder por um pouco os limites. Poucos rostos lhe dizem «bom dia».

A corrida é rápida e não tem intervalo. O pé no travão, ponto morto, abre a bagageira, pega no cesto, deixa à porta, volta à carrinha, mete a primeira, arranca. Os gestos maquinais, a rotina dos olhares de cuidado. «Isto já quase se faz de olhos fechados», comenta sorrindo, a cadeira desviada do seu grupo, num canto da cozinha de um hotel, para procurar um cesto porventura aí esquecido. O lar de idosos da rua Bernardo Albuquerque, o Hotel Triple na zona de Celas, o Instituto Missionário do Sagrado Coração, o restaurante «O Porquinho» já a sair da cidade, o Lar Teresiano da avenida com nome de rei, o Lar do Sagrado Coração ali bem pertinho, uma casa sem rosto (um cliente a deixar em breve) que não inspira confiança. Pára/arranca, entra/sai, travão/acelerador, estradas vazias a aguardar a freguesia da manhã.

No regresso à padaria, a pastelaria anexa já está cheia, os clientes procuram pequeno-almoço, pão bem quente a sair do forno. Um antigo freguês cumprimenta o Sr. José que, apressado, entra para organizar a casa. A cidade acordou! Não é mais só de alguns, é já de toda a gente. De repente e sem aviso, deixou de pertencer apenas àqueles que a percorrem na rotina do amanhecer. Os sons dos carros, a sonolência dos que se levantam, a alegria dos que nunca chegaram a adormecer. Bem de perto, ao ouvido, uns pequenos acordes de uma melodia eterna. Uma voz doce, de dezasseis anos apenas, ecoando no grande palco do festival da canção.



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