Vulto incontornável do século XX português, Egas Moniz foi o primeiro intelectual lusitano a alcançar o prémio Nobel pela sua investigação na área da imagologia e da psicocirurgia, com a descoberta e desenvolvimento da angiografia e da leucotomia pré-frontal. Aquém de quaisquer polémicas que estejam na retaguarda dos trabalhos Moniz, o seu legado foi fundamental no desenvolvimento da medicina da primeira metade do século XX, legando-nos uma herança que tem consequências ainda nos dias de hoje.
Egas Moniz não nasceu, efectivamente, com tal nomenclatura, nasceu Abreu em Avança a 29 de Novembro de 1874. A sua infância pouco tem de idílica e menos ainda de psicologicamente saudável. Com apenas 13 anos morre-lhe a irmã, deixando-o profundamente perturbado. Nos anos seguintes, e até completar 24 anos, a morte ceifa-lhe toda a família chegada e a penúria retira-lhe todos os bens, vendidos em hasta pública após a falência do negócio de família. Em plena juventude, encontrava-se sem ninguém.
É em Coimbra que o futuro médico, cientista e político inicia a sua carreira superior. Após os três primeiros anos de preparatórios médicos, entra finalmente no curso de medicina em 1984. Foi nesta cidade que ele viria a sofrer a primeira crise de gota, aos 24 anos, doença da qual padeceria até ao fim da vida e que o impossibilitou de tomar em mãos a prática das suas experiências. Como estudante destacou-se entre os outros no auxílio aos colegas pelos seus conhecimentos matemáticos, chegando mesmo a compor uma sebenta que analisava uma obra de álgebra do Dr. Souto Rodrigues. Tendo decidido alcançar mais graus académicos, defende, em 1900, a sua tese de licenciatura (Alterações anátomo-patológicas na difteria) que incluía a célebre dissertação A Vida Sexual – Fisiologia. Casa nesse ano com Elvira de Macedo Dias, não tendo havido filhos do casal.
Dois anos volvidos, Moniz completa a sua dissertação com A Vida Sexual – Patologia, que viria a dar origem à obra A Vida Sexual, bastante polémica na sua época mas à qual apenas apontaram o inconveniente de não ter sido escrita em latim para ter ainda maior divulgação. É nestes domínios que surgem as suas primeiras observações eugénicas, no facto de se dever proibir o acto do matrimónio a indivíduos com doenças graves contagiosas, de modo a não permitir a sua proliferação através da descendência.
Catedrático em Coimbra em 1910, rapidamente se transfere para a recente Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em grande parte provocada pela sua ligação cada vez maior à política e ao regime republicano que acabava de vingar em Portugal. A abertura do seu consultório e as idas cada vez mais frequentes a França acabaram por o desvincular à cidade académica. Na capital ficaria a cargo da cátedra de Estudos Neurológicos, destacando-se cada vez mais o seu interesse por estas matérias.
Ligado à política desde os tempos de estudante (foi contemporâneo de Sidónio Pais em Coimbra, não é de estranhar que tenha relegado a sua carreira científica por tantos anos, voltando apenas a ela por volta de 1919, já com 45 anos. Em 1908 chegou a ser preso pela tentativa de derrubar a ditadura de João Franco. Em 1917 foi fundador do Partido Centrista. Até ao término da sua carreira política foi deputado, Ministro de Portugal em Madrid (1918), Ministro dos Negócios Estrangeiros (1918/1919) e delegado à Conferência da Paz (1918/1919). Foi ainda responsável, no âmbito da política laicizante da primeira república, pelo restabelecimento das boas relações de Portugal com o Vaticano. Com a morte de Sidónio Pais e a sua substituição abrupta na Conferência da Paz, Egas Moniz desilude-se por completo da política e resolver enveredar por outros caminhos, concluindo que tal carreira é feita de “ilusório sucesso e muitas contrariedades”.
Egas Moniz nunca se desvinculou da sua actividade médica, manteve a sua clínica aberta e recebeu todo o género de pacientes, sendo inclusive vítima de um atentado por um doente. Liberto da política, pôde enfim dedicar-se por inteiro a essa prática, manifestando ainda o desejo de encontrar algo novo no mundo científico. É neste sentido que se dá a descoberta da angiografia, que lhe valeu o Prémio Oslo em 1945, e da terapêutica da leucotomia pré-frontal, da qual receberá o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949.
Muitos debates se têm focado quanto ao legado científico de Egas Moniz. A acusação americana de que o Nobel lhe deveria ser retirado tem os seus fundamentos, não deixando no entanto de se considerar inverosímil quando o assunto é estudado mais a fundo e seriamente. Por outro lado, há quem considere a angiografia a sua descoberta mais importante e, de facto, fulcral para a detecção actual de tumores.
A angiografia cerebral beneficiou dos vários estudos que lhe antecederam e de variadas descobertas, como a dos raios-x em 1985. Os desenvolvimentos no âmbito da anatomia e da fisiologia do sistema nervoso, além da electrofisiologia, foram fundamentais, assim como os estudos de cientistas como Ramón y Cajal, Babinsky, Souques ou Sicard. Iniciou os seus estudos com o apoio sempre presente de Almeida Lima, ao qual pediu segredo aquando as suas primeiras experimentações com animais (cães). O objectivo era conseguir visualizar os vasos cerebrais através de uma injecção de determinada substância na carótida interna. A experiência foi considerada bem sucedida. Depois da experimentação em cadáveres passou-se para os seres vivos, porém os resultados não foram de todo animadores, resultando no saldo da morte de um doente com parkinsón. Renovada a metodologia, com novas substâncias de contraste e concentrações, surge o primeiro êxito a 28 de Junho de 1927.
Enquanto método de diagnóstico, a angiografia rapidamente se divulgou, originando escola e destacando personalidades como Reynaldo dos Santos ou Lopo de Carvalho. Mas o que de facto deu notoriedade a Moniz e Almeida Lima foi o desenvolvimento da psicocirurgia, na ânsia perene de descobrir um tratamento cirúrgico para determinadas doenças mentais, tais como a esquizofrenia ou a psicose. Recorde-se que antes desta época não existia qualquer meio de tratamento destes doentes, amontoando-se estes em hospícios e sofrendo com eles a agonia da doença.
Um dos dedos que se apontam a Moniz é o facto de este ter passado directamente para a experimentação a partir de um teoria, sem antes se envolver nos estudos devidos sobre a matéria. Efectivamente esses estudos existiram, mas foram praticados por John Fulton em chimpanzés e, a partir daí, adaptados ao ser humano pelo médico português. A teoria incidia sobre a hipótese de que através da lesão da massa branca do lobo pré-frontal, por meio de um pequeno instrumento chamado leucotomo, se poderia diminuir o comportamento agressivo e nervoso (conceito cérebro/comportamento de Cajal, também com influências de Pavlov) de doentes graves sem outro meio de recuperação. A operação quase simplista e os resultados visíveis da intervenção deixaram a comunidade científica entusiasmada, relegando para segundo plano determinado efeitos secundários considerados menores face aos benefícios que a leucotomia pré-frontal provocava.
Desde que Moniz ouviu os estudos de Fulton, em 1935, até à sua nobelização, em 1949, esteve presente em cerca de 100 leucotomias, praticadas pelas mãos saudáveis de Almeida Lima. A decadência actual da psicocirurgia resulta do radicalismo praticado pelo americano Walter Freeman que ao tomar conhecimento do êxito de Moniz desenvolve uma nova variante do procedimento: a lobotomia. Numa intervenção que durava cerca de uma hora, com um instrumento semelhante a um picador de gelo, Freeman destruía por completo o lobo pré-frontal. De facto resultavam-se grandes melhoras na agressividade comportamental dos pacientes, mas estes perdiam grande parte da sua capacidade mental. As milhares de lobotomias que se fizeram graças a esta radicalização foram a principal causa da má reputação a que, trinta anos depois, a leucotomia de Egas Moniz se viu votada. A lesão brutal de uma parte do cérebro responsável pelo planeamento comportamental e o seu uso desenfreado e excessivo, mesmo depois do aparecimento dos psicofármacos e em doentes que não correspondiam às tais “doenças graves sem outra possibilidade de tratamento” de Moniz, levam à luz das novas descobertas científicas a constatar-se a sua crueldade e a inúmeros processos e culpas ao Nobel português, além de produções cinematográficas como Voando sobre um Ninho de Cucos, que deu o óscar a Jack Nickolson. Acontece que, na época, o consentimento informado estava longe de ser pensado e a exigências da guerra pediam pragmatismos.
A possibilidade de obter os mesmos resultados pela via farmacêutica sem os danos permanentes da cirurgia cerebral reduziram a inovação de Egas Moniz ao esquecimento e à ruína, contudo este já não presenciou essa decadência. Aos 75, juntamente com o cientista suíço Rudolph Hess, o médico português é galardoado com o Nobel levando ao auge a leucotomia e glorificando, tardiamente, a angiografia. Por detrás desta atribuição destaca-se a importância do 1º Congresso Internacional de Psicocirurgia, em Agosto de 1949 em Lisboa, sob a alçada de Freeman. Foi nela que a delegação brasileira propôs a candidatura ao Nobel, prémio que não viria a receber pessoalmente na Suécia por motivos de saúde. O seu êxito teria ainda outros pontos altos, como a criação do Centro de Estudos Egas Moniz para investigação neurológica e a distinção com a Grã-Cruz de Santiago de Espada.
Descrito por António Damásio como bom-vivant requintado, interessou-se por arte, jogos de cartas e literatura, chegando a conviver com Teixeira Pascoaes. Jubilado oficialmente em 1944, Egas Moniz viria a morreu vítima de uma hemorragia aos 81 anos, em 1955.