sábado, 28 de julho de 2007

Crentes

Crentes...
tão perto e tão longe de possuirem o que desejam. Tão lúcidos e tão loucos nas suas conquistas. Tão audazes e tão surdos no que reivindicam. Crentes... De que serve a crença? Uma certeza tão forte que nos ajuda a viver? Um dogma tão sincero inpossível de contrariar? Uma forma de andar no mundo sem ter nada a temer.
Não gosto de crentes. Dizem o que acreditam e recusam-se a ouvir os outros. Dizem comprender, mas apenas compreendem a sua verdade. Dizem descobrir mas apenas redescobrem o que já tinham de seu.
Vou fechar os ouvidos aos crentes. Prefiro a minha própria realidade.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

No banco do jardim

Sabe tão bem

ser o primeiro

sabe tão bem

ser o último

sabe tão bem

o viver verdadeiro

sabe tão bem

viver de súbito



querer ter-te comigo

e não te ter

tens rosto fraco

sem delineação

no dia em que surgiste

apareceste

desmanchas-te

para sempre

o meu coração



ser humana tem destas coisas

ser

por não ser

ao manifesto

eu

que quero ser

todas as coisas

sonho

por ser

segredo honesto



no dia em que morrer

voltarei

e viverei

tudo o que não vivi.

no dia em que morrer

saberei

que tive tudo

o que sempre quis



a beleza

de ter-te

a ti

sexta-feira, 6 de julho de 2007

A lebre e a tartaruga

Criticam-me.
Aprendi a fechar os ouvidos.
Sentimentos cruéis
Feridos
Afloram-me ao coração.
Criticam-me...

Porque cresce como cresce
Uma fúria impensada
De um odor
Profundo
Absurdo
Impuro
Inesperado?
Rasgo desta crueldade que não consigo esbater
Retirar do meu querer
Enfrentar
E derrotar.

Quero picar
- assim, bem picadinha –
esta minha fotografia.
Sorriso idiota!
Meu Deus, porque te comportas
De forma tão estúpida?!
Muda
Sem voz
Atroz
Maledicente...

Mente!
Por favor, mente!
Não digas que estás carente
E volta ao fingimento,
Adorado fingimento,
De que és tudo
E coisa nenhuma
Absurdo de existência
De um ser caprichoso
E odioso
- Uma bruxa!
Daquelas com caldeirão
Sem coração
E um livro de feitiços.

Por favor:
Transformem-me numa tartaruga
E não me deixem a lebre adormecer!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Renascença

Que caminho é este, minha Mãe,
Que visiono na minha frente?
Nas costas já carreguei
Todo o peso do Mundo,
Porém ainda estou perdido
Em ilusões de abundância
De um sonho que nunca virá!

Que caminho é este, minha Mãe,
Para onde já não sei como caminhar?
Dos amai-vos uns aos outros que Ele nos ensinou
Já não sei como rezar!
Fruto do ódio dos homens,
Morri sem vontade de amar!

Que caminho é este, minha Mãe,
Que nas mãos já me brotam os calos da inchada de chumbo
E da terra que não soube lavrar?
Meus pés sangram, meus olhos se fecham,
Minha pele se enruga, minha voz se ressente
E eu não consigo mais procurar...

Contudo, nas páginas do Livro,
Encontrei por fim este caminho,
E com ou sem alma destroçada
Sei já qual terá sido o meu destino
E quero entregar-te a ti, mãe, todo o amor
Que porventura ainda carregue no meu coração!

Quero, contigo Mãe, oferecer
Minha vida
Para ser o caminho de amor
Que meus irmãos
Necessitam

Quero dar as mãos,
Quero ver a cor da vida,
E se na cruz ainda sobrarem dez pedaços da minha carne
Aos abutres os recomendo,
Pois dela agora brotam
Dez sinais de esperança para o Mundo
Que em tempos quis construir

O Sótão - trecho

Os três irmãos permaneceram ali até a chuva diminuir e a lua voltar a brilhar. O sol nasceu, o vento parou, a aurora surgia em todo o seu esplendor e alegria. Tinha sido o fim, o fim de tudo, o fim de todos. O dia amanheceu uma vez mais, anunciando um novo recomeçar. Uma vida que cresceria a partir dali, daquele momento. Uma ânsia de felicidade que acompanhava uma doce paz. Uma paz que a tudo abrilhantava e concedia uma segunda oportunidade para recomeçar. Tê-lo-ia dito, aos três irmãos, aquele Deus a quem Ricardo falara, mas teriam que descobri-lo por si próprios através das suas próprias decisões. Cresceriam, envelheceriam e acabariam por concluir que tudo tivera o seu fim devido. E que Rosa estava onde sempre quisera estar: em paz.
Oh, lágrimas, envolvestes aqueles primeiros dias e a todos martirizastes com o teu sofrimento. Esquecimento! Nunca tal sucederia! Eram a família Melo e recomeçariam um novo dia. Uma, outra e outra vez. O povo, esse apenas aplaudiu. Não a triste sorte de Rosa, mas o fim do seu medo. Quanto ao relógio da torre, deixou-se suicidar e nunca mais ninguém ouviu o seu medonho toque…

O Tear das Moiras - trecho

“Mirina, minha cara, quantas histórias te poderia contar!... Se para os outros fostes rainha, princesa, talvez mesmo Afrodite na tua beleza, para mim representaste a segurança que nunca encontrei em mais ninguém. Tinhas o rosto de uma boneca e um brilho de andarilho que eram só teus. Eras exemplar na tua candura e felicidade, mas sabias ser fiel a ti mesma e aos outros, defensora da lei, crente na justiça, amiga do servo que a ti se ajoelhava pedindo pão. Enquanto viveste soubeste ter nas tuas mãos o teu próprio destino e desdenhaste quem to quis comprar, quem to quis comandar. Riste-te na cara de mais que um pretendente, não tiveste receio de te declarar independente do mundo e nunca ninguém te conseguiu domar. Foste mãe, pai, filha, irmã, esposa e empregada. Foste tu, só tu, e o que quiseste mais ser. Apagaste do zumbido a repressão do teu nome. Amaste como uma louca o que não podias amar, viveste como poucos tudo quanto tinhas a viver. Não renegues quem és, não percas essa tua marca. Olha para ti e procura descobrir – te. És muito mais que uma mera imagem no espelho!”

Esperança I - Gustav Klimt

Poucos são os quadros de Gustav Klimt que efectivamente têm uma história, mas este é sem dúvida um deles. Pintado a óleo sobre tela, em 1903, está hoje exposto em Otawa, na National Gallery of Canada. Até chegar aqui, e desde a sua criação, a obra teve um longo percurso e uma motivação deveras original. Ao pintar uma mulher grávida e nua Klimt sabia que ia contra um dos maiores tabus da conservadora sociedade vienense. Este era, de facto, um tema raras vezes representado pela arte: a gravidez, passo que antecede a maternidade em si e resultado da experiência sexual. Por tal, apesar de o quadro estar terminado em 1903, não foi imediatamente exposto. Mas comecemos pelo início.
São conhecidos os diversos boatos sobre a vida de devassidão de Gustav Klimt, nomeadamente em relação às mulheres dos seus retratos que, em grande parte, surgiam nuas e em poses de teor erótico. Sabe-se no entanto, e apesar de dois dos seus filhos legitimados serem de uma destas modelos, que ele as respeitava profundamente, chegando mesmo a custear as suas despesas mais sérias desde que continuassem a trabalhar para si. Estas raparigas, a maioria advindas de famílias com dificuldades económicas, acabavam desta forma por se tornarem dependentes dele economicamente, estando sempre à disposição quando eram chamadas. Note-se que o interesse do artista residia pura e simplesmente no aspecto físico, nas formas corporais que retratava nas suas obras, facto que leva ao desconhecimento de praticamente todas as modelos de Klimt. Herma, de quem se sabe apenas o nome próprio, é por tal uma excepção.
Sabe-se que esta jovem, de quem o pintor dizia que o «traseiro era mais belo e inteligente que a face de muitas outras», desapareceu subitamente, situação que deixou o artista preocupado. Ao procurá-la descobriu que Herma se encontrava grávida, não estando portanto em condições de continuar o seu trabalho. Não obstante, Klimt esforçou-se por a fazer regressar, nascendo assim o primeiro quadro intitulado Esperança.
Só ao fim de alguns anos o quadro foi finalmente exposto, resultado da prudência de Klimt em não renovar logo em 1903 a polémica de Os Quadros das Faculdades. A obra foi rapidamente adquirida por Fritz Warndorfer, co – fundador do atelier vienense, que a colocou numa moldura com fechadura para todos a poderem apreciar sem cobiça. Entre 1907 e 1908, Klimt voltaria ao mesmo tema com Esperança II, desta vez num tom mais brilhante e pacífico e de profunda densidade psicológica.
A Esperança I traz um pouco dos mesmos elementos que fazem parte das Serpentes de Água I. As diferentes texturas e cores subdividem a realidade em diferentes planos, conferindo à imagem da protagonista em estado de graça certa tridimensionalidade que não é muito natural em Klimt. O esbatimento das cores do corpo da jovem, construindo diferentes texturas, ajuda a esse efeito, não se observando as linhas de contorno. Por tal a personagem olha para o mundo com desafio, querendo sair da tela, ao mesmo tempo que inclina as mãos sobre o ventre em sinal de espera. É das imagens mais belas do autor e provavelmente uma das que mais se destaca da sua técnica pessoal secessionista com um tema claramente inovador. Esta mulher, de longos cabelos vermelhos, invocando a mesma sensualidade presente em Dánae, e embelezada com uma coroa de flores, quase como uma noiva, olha o mundo e aguarda. Que pensamentos a afligirão?
Ultrapassando os diferentes planos que se sobrepõem, quase como véus que a circundam, surge um ser marinho agoniante, de soberba cabeça e largo tamanho, que, a par dos olhos desconfiados e intensos da jovem, confere tensão ao quadro. A forma como se serpenteia em torno da protagonista e coloca os seus olhos ao mesmo nível que os da rapariga, e com a mesma frontalidade, dá arrepios, desconforta, amedronta. A curvatura das linhas é, mais uma vez, aqui promotora de tensão, entrando em conflito com a pacificidade branca e pura do ventre que vai crescendo com uma nova vida. Cheguei por mim à conclusão que o bicho, semelhante a uma espécie de girino mas também a um espermatozóide, é o símbolo masculino que completa a origem da vida. Homem e mulher estão portanto presentes, ainda que o segundo mais ou menos metamorfoseado.
Não utilizei o termo «bicho» por leviandade. O homem nas obras de Klimt poucas vezes ou nenhumas assume a mesma distinção que a mulher, ainda que esta não escape também, por vezes, à conspurcação. Quase que como se o resultado da infâmia da mulher resultasse da animalidade do homem, do seu enleio e arrogância. Assim, ele é visto como um ser hediondo, tenebroso, negro, que ronda a mulher, sedu-la, mas depois a deixa sozinha na espera. É um novo sentido ao nome Esperança. Esperança numa vinda e esperança num regresso.
Ao mesmo tempo a mulher não parece amedrontada pelas figuras que a rodeiam. Também ela contribuiu para o seu estado, também ela nos olha sem receio, numa expressão dura e pouco maternal. Será mais em gesto de desafio. Desafia-nos a julgá-la, a perturbá-la, a ameaçá-la. Desafia todos os que a circundam: o homem/bicho que a consumiu; a morte em forma de caveira; a dor que surge, escondida, por trás da morte, anunciando que uma não existe sem a outra; o vício, deformado, que leva à destruição do corpo e da alma; a doença, ao lado da morte, pálida, desalentada, sempre presente. E, ao mesmo tempo que parece enfrentar tudo e todos, olha para nós, a sociedade, e enfrenta-nos também. Teremos nós a ousadia de perturbar a sua espera? Não há nada de vergonhoso na sua condição! Ela é um elemento natural na mulher, faz parte dela, e a jovem tudo fará para que não a perturbem.
A imagem é portanto bastante inquietante. Apesar de todo o corpo, proporcionalmente perfeito, anunciar o tal “estado de graça” em que a protagonista se encontra, o seu rosto é muito pouco maternal. Parece mais em acto defensivo enquanto toda a sua fisionomia se condiciona a uma espera. Por outro lado, a voluptuosidade dos cabelos ruivos e o ser negro que a rodeia transfere a nossa mente rapidamente para a relação sexual, causa da tal esperança. O quadro é a síntese da nossa origem e dos males aos quais estamos expostos pela simples razão da existência. A pintura é então, ao contrário do tema que encerra, da gravidez, pouco feliz.
Chegamos à conclusão então que esta é a reflexão sobre a origem da vida humana. Homem e mulher – ela ser branco e puro, ele ser negro e hediondo – que do acto amoroso fazem nascer um novo ser. O novo ser que, em circunstâncias mais dúbias, acalenta os ódios da sociedade e expõe os males da humanidade. Talvez a jovem até seja solteira – a coroa denuncia uma noiva, não uma mulher já casada. Mas também ela tem direito à esperança, ao seu orgulho. E ela não parece ter receio de ninguém.
Há uma certa paragem no tempo. O quadro em si não possui grande temporalidade, mas apercebemo-nos que conta uma história e pára em determinado ponto entre o passado e o futuro. Como disse anteriormente é a síntese de uma história enquadrada num determinado instante. E apesar de não ser um instante feliz e os elementos em choque produzirem certa tensão, há beleza nas formas da mulher, na sua condição e no plano arroxeado que a parece separar do monstro marinho. Provavelmente simples ornamentação, os pequenos pontos e formas geométricas em sequência transmitem movimento, harmonia. No meio do desespero há sempre espaço para um tempo de esperança.
Ainda como destaque, uma característica proeminente na obra. Feita num formato de 189 x 67 cm, este é um retrato que se impõe pela sua grandeza, em dimensão humana. A mensagem fica então distinta e a condição física da mulher aos olhos de todos os que a queiram admirar ou julgar. O corpo, aqui sem nenhum teor propriamente erótico, é a manifestação da condição da própria mulher enquanto mãe, enquanto albergue da humanidade. Albergue esse que talvez traga uma nova esperança ao mundo soturno que vem habitar. Não há pois que ter vergonha.

antes de dormir...

Novamente um pouco de música...

Aspas

Quantos poemas

faltam

no mundo?


Que foi feito

da poesia?


Amar

não passa

de nostalgia...


Olhar

não passa

de castigo...


Onde ficou

a pena

do poeta

a inspiração

que penetra

bem fundo

no coração?


Onde estãos

as palavras

os conceitos

as letras?


Ficaram esquecidas

nas gavetas

dos antigos

poetas?

Recordai

quantas metas

teremos que ultrapassar

para voltar

a viver

esse sonho...


Renascei

Pessoa

Antero

Camões!

O mundo

é uma poça de lama

sem emoção...

quarta-feira, 4 de julho de 2007

No dia em que nasci

Página do diário de alguém que leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos no dia do seu vigésimo aniversário.

25 de Maio de 1988, Paris
Sou capaz de me sentir melindrada por muito, mas não por isto. Nascia naquele dia em que o mundo dava uma volta e morria na sua própria crueldade. Nascia quando os pássaros desistiram de cantar por já não encontrarem beleza alguma no que viam. Nascia quando a música de Mozart, de repente, perdia o ritmo, a sinfonia, e não ficava mais nada que um monte de folhas esquecido no cimo de uma mesa empoeirada. Nascia quando alguém dizia, mais uma vez, que certo dia tinha tido um sonho de igualdade e justiça no mundo. Nascia quando não sei bem quem morria por essa mesma igualdade e justiça. Nascia no dia em que o mundo caía e eu assistia, acabada de nascer, do meu berço de trapos.
Foi num certo dia de primavera que eu nasci. Não sei se fazia sol, nem tão pouco se chovia. Só sei que nasci nesse dia e desde então me questiono sobre a razão de tal facto. Não possuí nenhum talento, não ganhei qualquer medalha, não me destaquei em nada e não fui o orgulho de ninguém... Porque nasci então? Esse tal dia de verão parece ter então perdido a sua importância no calendário pois, ao olhá-lo, mais não vejo que dois números unidos para me fazerem envelhecer. Dia após dia.
Tive um amigo que me disse que não nascemos para morrer, nascemos para viver e para ver viver os outros. Eu nasci para ver viver os outros, não mais que isso. Os dias vão passando e na penumbra da minha janela pergunto-me o que estou aqui a fazer. Há mais no mundo que uma janela, contudo eu continuo junto dela à procura de um simples caminho, uma simples instrução de como abri-la e fugir. Nunca fiz nada, nunca sonhei nada, apenas vi os outros passarem ao meu lado sem muito mais o que fazer que ver os seus iguais passarem. São iguais a mim, no fundo sei-o. São a confirmação de que andamos todos aqui à procura do que o outro fez para sabermos o que temos que fazer. Passamos a vida a ver andar os outros... E, no final, o que fica? Fica a certeza de que fizemos algo pela vida!
Repito-me, eu sei. Sou pessoa de repetições. Não olho o que escrevo, olho o que faço e fico por aí. E já nada mais posso fazer. Nasci para estar aqui e pouco mais faço para além disso. Um dia a minha mãe disse-me que não podemos estar na vida a ver olhar os outros. Ela tem muito mais sentido, muito mais significado, muito mais importância que um simples olhar na nossa condição de mortais. Se o mundo acabasse amanhã o que levaria eu dela? A certeza de ter vivido? A certeza de ter respirado um ar, que já nem ar é com toda a poluição e químicos que andam por aí, matando-nos só pela simples condição de estarmos vivos. Se o mundo acabasse amanhã eu só poderia ter a certeza de uma coisa: a minha amiga Joana tem o cabelo castanho mas pinta-o constantemente de laranja; a senhora da mercearia chora ainda hoje o marido defunto numa guerra com 40 anos de distância; a minha irmã esconde desenhos de paisagens nas bordas das folhas dos cadernos; o meu primo Rui não tem namorada - tem namorado; a minha mãe faz renda duas horas por dia, faz o jantar às 8 e vê a novela ás 9; o meu pai dorme quatro horas por noite e trabalha 8 horas por dia; o André tem um boné do Benfica mas é do Sporting; a tia Matilde diz que é feliz mas chora sempre que o tio está em casa.Escreveria um livro com tudo isto? A minha janela tem o ferrolho consumido pela ferrugem. Na televisão não passa nada que a ilusão dos homens não faça acreditar. Na rádio oiço músicas cujas palavras desconheço. No dia em que nasci disse a Deus que me perdoasse, que não merecia viver num mundo assim. Ele respondeu-me que nascera para ver os outros passar. Ver porquê, porque não actuar? Porque assim serias diferente deles e nesse mundo em que agora habitas quem é diferente ou morre jovem ou nem sequer teve direito à vida.




in Via Latina 2007

Memorial às Mulheres

Não podia estar aqui se o mundo não evoluísse. Não poderia estar aqui se a mácula masculina não vacilasse e o peito sadio das que criam a vida não se manifestasse aos reis. Não poderia estar aqui se a vértebra de que fui criada não se dobrasse e constatasse que me coube a mim mais que a simples missão de procriar. Também nasci de homem e mulher, também tive minhas contas com o passado, presente e futuro, também aprendi a ser forte e a enfrentar o mundo. Também soube ler e escrever, também tive direito a criar as minhas filosofias, também dei conselhos a Aristóteles, Sócrates e Platão. Também vim, por isso, desse tal mundo das ideias e, por ele, também tenho o direito de regressar e renascer. Não me cabe a mim ficar de lado. Não me cabe a mim fechar os olhos. Não me cabe a mim ser vítima desta sociedade. Também tenho mãos, pés e memória. Também sei julgar o vigarista pelos erros que me infligiu. Está no bordado toda a matemática da vida. Está na educação toda a dedicação de um grande empreendimento. Está no sonho a capacidade de construir a obra que Deus quis. Posso não olhar o inimigo nos olhos e dizer-lhe que o enfrento sem medos! Posso não possuir músculo para levantar muitos quilos de peso! Posso não aguentar a perda sem um lágrima de comoção. Não posso recusar o papel maternal que me foi incumbido por Deus. No entanto sei que, no meio da guerra, é por mim que os homens choram e é dela, a figura a mim inerente, que eles chamam.

Cartas a um desconhecido X

Não consigo esquecer o dia em que te conheci... Provavelmente estás a rir-te com estas minhas palavras, soluções de lembranças que deveriam ter ficado num passado distante, apenas meu e das minhas ilusões. Mas eu sou uma mulher de ilusões! Não vivo a realidade, vivo o que gostaria que ela fosse. Talvez por isso esta minha depressão insista sempre em retornar, tornar-se cada dia mais forte e perpétua, até um dia, por fim, me consumir.
Tenho saudades do tempo em que me abraçavas e dizias que nada no mundo acabaria com uma felicidade que parecia eterna. Hoje, passados tantos anos, compreendo os perigos do sonho. Sonhar torna-nos frágeis, leva-nos para a linha da frente da batalha e não nos deixa ver com nitidez o inimigo. Se voltasse atrás esqueceria o sonho, permanceria na realidade crua e nua e não olharia a meios para alcançar os objctivos traçados para o meu futuro. Hoje tenho pena de mim. Se não tivesse sonhado teria pena dos outros.
Dói coração... Pára de bater de vez!!!

Impacto Ambiental - Reescreve-se a história


Reescrever a história tem destas coisas! Há os que ficam zangados, furiosos, os que ficam alegres, felizes, e há aqueles para quem as mudanças são indiferentes, pedaços inevitáveis do tempo. Observando o andar empertigado, altivo, de uma professora universitária, recordo as origens da sua condição: mulher como as outras, sujeita aos mesmos males e às mesmas bênçãos, possuidora das mesmas formas e de um temperamento quase sempre semelhante às das suas congéneres, acalenta um brilho transverso, algo superior, merecedor de questionamento. O que a torna diferente é a forma como olha o mundo, as suas cores, o seu palpitar, a sua essência. E o rosto, sereno, que transporta foi o resultado de um trabalho e de um exercício mental quem nem todas as da sua geração conseguiram alcançar.
Em Coimbra, cidade universitária, a jovens moças, já não tão castas e recatadas como as tradicionais Evas, procuram um conhecimento antigamente reservado apenas a Adão. Para o efeito, muitas delas procuram os lares de religiosas, casas abrangidas pelas regras da igreja, com as suas tradições mais ou menos perenes e os seus dogmas mais ou menos aceites. O Lar Teresiano, instituição fundada por Santo Henrique de Ossó é uma delas! Situado mesmo ao lado do Convento das Carmelitas, descubro uma grande casa pintada de tons creme, lembrando tecidos de vestido de noiva, recatada no seu aconchego, ladeada por jardins, pequenos quintais e casas senhoris, habitações dos notáveis da cidade. Quem por ali passa vê uma casa tradicional, de telha vermelha e aspecto asseado, brancura imaculada de cuidado e empenho nas aparências. Zona mais ou menos chique, a rua acolhe o sossego e a paz que a maioria das casas religiosas transmitem.
A imagem da professora universitária não me sai da cabeça. Curiosidade? Bastante. Na viagem que empreendo anseio por reescrever um evangelho que ficou preso na minha memória deste os tempos da catequese. Transtornada, olho em meu redor e apreendo uma curiosidade um tanto ou quanto repugnante: de entrar, ver e criticar, ou mesmo surpreender-me com as estranhas mutações do tempo. Vivem no Lar Teresiano cerca de 50 raparigas. Que pensarão, como viverão? De caloiras a veteranas, compartilham o dia a dia dos estudos, das refeições a horas, da rotina das aulas e das saídas nocturnas (programadas com antecedência e aviso para não haver problemas com as religiosas). Após esta visita poderei reescrever a história?
«Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas não podes comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com certeza morrerás» – disse Deus a Adão. Mas Eva, a mulher, mãe dos homens, enganada pela serpente, quis experimentar esse conhecimento e compartilhou-o com o marido. Deus amaldiçoou-a: «Vou fazer-te sofrer muito na tua gravidez: entre dores, darás à luz os teus filhos; a paixão vai arrastar-te para o marido, e ele te dominará».
- A Bíblia precisa de ser actualizada! – comenta a rapariga da sala de estudo, morena, olhos escuros, de auriculares nos ouvidos e livros médicos na frente. Olhos penetrantes, perscruta o conhecimento sobre a vida e a morte que o homem vem redescobrindo desde a saída do Éden. No quinto ano do curso de medicina as dúvidas acumulam-se, as responsabilidades aumentam, o estudo é eterno e nunca reconciliador com os textos da antiguidade.
A sala, logo à entrada do Lar Teresiano, acolhe um ar pesado, de introspecção, acalentado pelo soalho encerado e as portas e o tecto de madeira. Das paredes pintadas de branco, prateleiras repletas de livros, clássicos, religiosos, universais, adornam sem emoção um sentimento de repressão, angústia, nervosismo ansioso que busca, na maioria das vezes, muito mais a fixação que a aprendizagem. Em época de exames, as jovens centram-se nesse espaço, cobrem as várias mesas com apontamentos, livros grossos, por estrear, canetas de feltro, marcadores, lápis, post-its e o empenho de quem quis ser muito mais que as suas mães e avós. Quem as pode culpar?
- Desde pequena que queria ser professora de História. Sei que não há emprego, mas era o que eu desejava…
A resignação dá lugar à esperança de um rosto risonho e fraterno. Por detrás de um exemplar resgatado do Paço do Conde, a futura professora perde-se entre os registos das entradas e saídas de um Recolhimento, casa de clausura para jovens moças do século XVIII. Mudam-se os tempos… Aquela outra casa de raparigas vai servir de tese de seminário!
- Será que um dia também vão escrever sobre nós?
Reescreve-se a história. No Lar Teresiano as paredes têm ouvidos, as escadas rangem e o sol não perturba o ambiente sóbrio e de recato. Das alcatifas cinzentas solta-se um cheiro a pó disperso. A madeira escura, de cerejeira, obscurece o espaço, torna-o pesado, lembra velhos palacetes de outrora. A luz esgueira-se por uma cortina fechada. Permanece o frio de um Verão abstracto, que permaneceu conceito nos fins de Junho. Descubro um busto de Eça que olha, penetrante, firme, perspicaz como sempre foi, para dois computadores inutilizados. Marcas desta geração do amanhã, que busca o conhecimento e procura a novidade.
Subo as escadas em silêncio. Espelhos do tamanho de pessoas reflectem a minha imagem. Arranjo o cabelo, a roupa. Flores de beleza artificial enfeitam os corredores, palpitando de cor (rosa bebé, azul turquesa, amarelo torrado) os andares soturnos, os átrios vazios, as janelas corridas. As jovens escondem-se nos quartos, individuais, estudando, reflectindo, sonhando ou dormindo. Chiu… Silêncio! Não se quer barulho. Estuda-se e mais nada! Dando-se a volta à casa vêem-se portas fechadas ou faces cansadas, brilhos apagados por um bem maior. A felicidade procura-se no conhecimento, na essência do mundo, nas palavras dos livros, nas folhas de prova e ritmos clássicos que, de um ou outro quarto, ressaltam ao meu surdo ouvido. Mozart… Schuman… Não! Lenny Kravitz!
Uma leve brisa assalta-me o corpo, desprevenido, arrepiando a pele que apela ao Verão. Sentada nas escadas, observo um lugar que respira o odor puro do chão de mosaico bordeaux acabado de lavar, da rugosidade dos tapetes que ocultam a poeira persistente, do cheiro a livro guardado, esquecido num canto do armário e por fim recuperado para dar uma nova visão à história. Perdeu-se a vida eterna! Ganhou-se a sabedoria, o discernimento entre o bem e o mal, o pecado original… Terá perdido tanto o mundo pelo pecado da mulher?
De uma sala ampla e pouco mobilada, uma senhora alta e altiva empenha um conjunto de livros e dirige-se às escadas que conduzem aos andares superiores. Saia abaixo do joelho, blusa branca abotoada até ao pescoço, casaco de lã a ocultar o que pouco ficou descoberto, meias escuras cobrindo as pernas finas, olhar firme, circunspecto, ciente do caminho que percorre e segura das decisões tomadas. O véu ficou guardado em tradições menos rígidas e novos horizontes que a igreja se atreveu a percorrer nos últimos trinta anos. Calma. Dos seus passos, da sua voz e das suas palavras uma calma serena e quase irritante percorre as fibras da minha mente e da minha pele, habituadas às cruezas e intransigências de um mundo que não se rege tanto de aparências. Imagem em quase tudo semelhante às das outras freiras que coordenam e gerem o Lar Teresiano. Fio de prata ao pescoço com um pequeno crucifixo pendente, terço entre os dedos para mais uma hora de oração.
Afiançam que procuram não interferir com a vida das “meninas” que habitam na casa, presas agora aos desígnios do calendário de exames. Mas, em casa de mulheres, as paredes têm ouvidos…
- Aquelas meninas estiveram na conversa até às duas da manhã. Isto não pode ser, havia pessoas a estudar.
- No fim-de-semana tivemos a impressão que entrou um rapaz aqui dentro.
- E daí?
- Não esteve só à porta, entrou num dos quartos!
- A Internet é para o uso nos estudos, não para copiar DVDs!
- Oh irmã, você já viu ao preço a que estão as coisas?!
Sussurros. As conversas funcionam em segredo. Memórias partilhadas dos tempos do secundário, das aventuras e peripécias da infância e da adolescência, do que o passado ainda insiste em impor e do que o futuro exige que permaneça no pensamento. Querer abrir a porta e sair mas ter que ficar. A campainha toca. Toca sempre. Ninguém tem a chave. Há sempre uma “irmã” para destrancar o trinco. Lá fora, o sol brilha.
- Quando terminar o curso vou casar. Quero ter pelo menos dois filhos…
- Casar?! Deus me livre! Acho que se ficasse grávida apanhava um trauma!
- Sou contra o aborto.
- Olha, eu sou a favor.
Após um momento de pausa, as jovens voltam aos livros, aos conceitos, às ideias. Por agora não se debate mais nada, não se sonha com o que se quer alcançar. A campainha toca. Fecha-se um caderno, abre-se outro. O desfolhar das páginas perturba a paz impregnada de stress, o lápis sublinha, mais uma vez, a frase maldita, o preconceito adquirido, mas brevemente esquecido, de que a totalidade das coisas se resume à junção de tantas outras. Economia, filosofia, anatomia. Gritos reprimidos abafam estojos revirados. Não se pensa no futuro, pensa-se no presente. Vão-se adiando planos, crenças de uma infância e de um tempo que hoje, trinta anos volvidos, parece estar perdido em outros séculos. Primeiro o conhecimento, depois a tradição.
- Vive-se aqui entre o céu e o inferno, entre o que se julga correcto e o que é dado como falso. Alimenta-se a alma, não mais restringida aos compromissos do lar e aos dogmas da igreja. Caminha-se para a emancipação, ainda que por entre as dores do parto e as paixões pelos homens. Mas não se crê – ah, não se crê mesmo mais! – que o conhecimento, especialmente pela mulher, está na origem de todos os males do mundo. Por mais que ainda se acolha o recato, as paredes continuam a ter ouvidos. Para as coisas aqui de dentro e para o mundo lá de fora.

Confissões à noite

Noite
Que oportunidade me dás?
A de te olhar embevecida
E ler-te os astros
De um amor em pedaços
Que me escapa
Que me desdenha?

Perdão.
Tenho que pedir perdão!
Tudo o que tenho no coração
É raiva e fúria
Incúria
De uma mensagem
A decifrar.

Despertar
De uma vida que desconheço
Perdoar
Actos impensados
E pensamentos odiosos
Mentirosos
Ambiciosos
Que quero rasurar.

Desmembrar
A impiedade do meu beijo
Um desejo
Tão longe de partilhar
Como de entender.

Parte-te espelho!
Diz-me quem sou!
Decifra esta minha identidade!
Sei que possuo maldade
Em mim
Mas sei...
Serei...
Diz-me que não!
Também tenho coração,
Amor, solidão
E lágrimas.

Guerra- Pára!
Dai-me a vossa espada, cavalo e brasão!
A aristocracia não é nada
O poder não tem piada
E quem
Como eu
Quer ser
Tudo e coisas que tais
Espera-lhe apenas a solidão e o desdém.
Nada mais...

Na voz do poeta

Entrei dentro de mim
E observei:
Não vi sonhos, vi-te a ti
E encontrei
Os sonhos que construí
e procurei…

Sabes que vivo aqui
Sozinha
Esperando que chegues
Esperando…
E procurando encontrar
Outra coisa ainda,
(Na voz do poeta
“uma coisa ainda mais linda”)
Um sonho
Uma esperança
Uma lágrima de alegria.

Mas quando por fim chegares
E eu te olhar nos olhos
Verei não os meus sonhos
Não as minhas esperanças ou alegrias
As minhas sombras, os meus dias,
Os meus desejos e fantasias

Verei apenas que fui eu,
SozinhaA construir-te ao espelho

terça-feira, 3 de julho de 2007

O Novo Evangelho dos Génesis


Nem só de dinheiro vive o homem! Compreendê-lo torna-se mais complicado do que se julga. No altar, o prior remata: «Nem só de pão vive o homem»! Compreendemo-lo? Não sei. Depende da nossa disposição, do estado da nossa alma, se a novela no dia anterior terminou ou não de forma tempestuosa, se o jogo de futebol teve ou não um remate fabuloso, se a namorada ou o namorado deixaram que os nossos desejos fossem mais além da intenção. Nem só de dinheiro e de pão vive o homem… De que viverá ele então?
O homem possui um complemento que vem buscando desde a antiguidade clássica. Sócrates chamava-lhe o amor à sabedoria; entre nós ficou conhecido por filosofia. Mas em Coimbra não se procura só as letras. À cidade do conhecimento acorrem os matemáticos, os engenheiros, os médicos, os professores, os cientistas, os investigadores. A sua localização é dispersa, espalham-se pelo centro e arredores, mas todos procuram um só lugar: a universidade.
Se em outros tempos o local era dominado pela descendência masculina das grandes casas portuguesas e brasileiras, hoje a situação inverteu-se. Quem procura homens enganou-se no caminho (ou mesmo no século). As jovens moças, já não tão castas e recatadas como as suas tradicionais Evas, aventuram-se pelos caminhos do conhecimento, das artes e das letras, encontrando um amor que não está somente reservado a Adão. Vivem sozinhas ou em conjunto, trazem os namorados, colegas ou maridos, num apartamento, numa casa, cozinhando, trabalhando, limpando, estudando. Mas existem aquelas que, não esquecendo o que foram ou mesmo o que são, ansiando por uma tranquilidade que as repúblicas não transmitem, procuram as casas de religiosas, com as suas regras mais ou menos rígidas, as suas tradições mais ou menos perenes, os seus dogmas mais ou menos aceites.
Em Coimbra existem várias. Procurando uma especial encontramos o Lar Teresiano, mesmo ao lado do Convento das Carmelitas (lugar de culto não apenas a Deus mas a uma santa, Lúcia Marto, que aí passou os seus últimos anos de vida), grande casa pintada de tons creme, lembrando tecidos de vestido de noiva, recatada no seu aconchego, ladeada por jardins, pequenos quintais e casas senhoris, habitações dos notáveis da cidade. Vivem aí cerca de 50 raparigas. De caloiras a veteranas, compartilham o dia a dia dos estudos, das refeições a horas, da rotina das aulas e das saídas nocturnas (programadas com antecedência e aviso para não haver problemas com as religiosas). Quem por ali passa vê uma casa tradicional, de telha vermelha e aspecto asseado, brancura imaculado de cuidado e empenho nas aparências. Curiosidade? Bastante. Todos têm curiosidade de entrar, ver e criticar, ou mesmo surpreender-se com as mutações do tempo.
«Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas não podes comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com certeza morrerás» – disse Deus a Adão. Mas Eva, a mulher, mãe dos homens, enganada pela serpente, quis experimentar esse conhecimento e compartilhou-o com o marido. Deus amaldiçoou-a: «Vou fazer-te sofrer muito na tua gravidez: entre dores, darás à luz os teus filhos; a paixão vai arrastar-te para o marido, e ele te dominará».
- A Bíblia precisa de ser actualizada! – comenta a rapariga da sala de estudo, morena, olhos escuros, de auriculares nos ouvidos e livros médicos na frente. Olhos penetrantes, perscruta o conhecimento sobre a vida e a morte que o homem vem redescobrindo desde a saída do Éden. No quinto ano do curso de medicina as dúvidas acumulam-se, as responsabilidades aumentam, o estudo é eterno e nunca reconciliador com os textos da antiguidade.
A sala, logo à entrada do Lar Teresiano, acolhe um ar pesado, de introspecção, acalentado pelo soalho encerado e as portas e o tecto de madeira. Das paredes pintadas de branco, prateleiras repletas de livros, clássicos, religiosos, universais, adornam sem emoção um sentimento de repressão, angústia, nervosismo ansioso que busca, na maioria das vezes, muito mais a fixação que a aprendizagem. Em época de exames, as jovens centram-se nesse espaço, cobrem as várias mesas com apontamentos, livros grossos, por estrear, canetas de feltro, marcadores, lápis, post-its e o empenho de quem quis ser muito mais que as suas mães e avós. Quem as pode culpar?
- Desde pequena que queria ser professora de História. Sei que não há emprego, mas era o que eu desejava…
A resignação dá lugar à esperança de um rosto risonho e fraterno. Por detrás de um exemplar resgatado do Paço do Conde, a futura professora perde-se entre os registos das entradas e saídas de um Recolhimento, casa de clausura para jovens moças do século XVIII. Mudam-se os tempos… Aquela outra casa de raparigas vai servir de tese de seminário.
- Será que um dia também vão escrever sobre nós?
Reescreve-se a história. No Lar Teresiano as paredes têm ouvidos, as escadas rangem e o sol não perturba o ambiente sóbrio e de recato. Das alcatifas cinzentas solta-se um cheiro a pó disperso. A madeira escura, de cerejeira, obscurece o espaço, torna-o pesado, lembra velhos palacetes de outrora. A luz esgueira-se por uma cortina fechada. Permanece o frio de um Verão abstracto, que permaneceu conceito nos fins de Junho. Um busto de Eça olha, penetrante, firme, perspicaz como sempre foi, para dois computadores inutilizados. Geração do amanhã, que busca o conhecimento e procura a novidade.
Sobem-se as escadas em silêncio. Espelhos do tamanho de pessoas reflectem a imagem dos visitantes. Concerta-se o cabelo, a roupa. Flores de beleza artificial enfeitam os corredores, palpitam de cor os andares soturnos, os átrios vazios, as janelas corridas. As jovens escondem-se nos quartos, individuais, estudando, reflectindo, sonhando ou dormindo. Chiu… Silêncio! Não se quer barulho. Estuda-se e mais nada. Dando-se a volta à casa vêem-se portas fechadas ou faces cansadas, brilhos apagados por um bem maior. A felicidade procura-se no conhecimento, na essência do mundo, nas palavras dos livros, nas folhas de prova e ritmos clássicos que, num ou noutro quarto, ressaltam ao surdo ouvido. Mozart… Schuman… Não! Lenny Kravitz!!
Uma leve brisa assalta o corpo, desprevenido, arrepiando a pele que apela ao Verão. Sentando-se nas escadas observa-se um lugar que respira o odor puro do chão acabado de lavar, da rugosidade dos tapetes que ocultam a poeira persistente, do cheiro a livro guardado, esquecido num canto do armário e por fim recuperado para dar uma nova visão à história. Perdeu-se a vida eterna! Ganhou-se a sabedoria, o discernimento entre o bem e o mal, o pecado original… Terá perdido tanto o mundo pelo pecado da mulher?
De uma sala ampla e pouco mobilada, uma mulher alta e altiva empenha um conjunto de livros e dirige-se às escadas que conduzem aos andares superiores. Saia abaixo do joelho, blusa branca abotoada até ao pescoço, casaco de lã a ocultar o que pouco ficou descoberto, meias escuras cobrindo as pernas finas, olhar firme, circunspecto, ciente do caminho que percorre e seguro das decisões tomadas. O véu ficou guardado em tradições menos rígidas e novos horizontes que a igreja se atreveu a percorrer nos últimos trinta anos. Calma. Dos seus passos, da sua voz e das suas palavras uma calma serena e quase irritante percorre as fibras de uma mente e uma pele habituada às cruezas e intransigências do mundo lá fora. Imagem em quase tudo semelhante às das outras freiras que coordenam e gerem o Lar Teresiano. Fio de prata ao pescoço com um pequeno crucifixo pendente, terço entre os dedos para mais uma hora de oração.
Procuram não interferir com a vida das “meninas” que habitam na casa, presas agora aos desígnios do calendário de exames. Mas, em casa de mulheres, as paredes têm ouvidos.
- Aquelas meninas estiveram na conversa até às duas da manhã. Isto não pode ser, havia pessoas a estudar.
- No fim-de-semana tivemos a impressão que entrou um rapaz aqui dentro.
- E daí?
- Não esteve só à porta, entrou num dos quartos!
- A Internet é para o uso nos estudos, não para copiar DVDs!
- Oh irmã, você já viu ao preço a que estão as coisas?!
Sussurros. As conversas funcionam em segredo. Memórias partilhadas dos tempos do secundário, das aventuras e peripécias da infância e da adolescência, do que o passado ainda insiste em impor e do que o futuro exige que permaneça no pensamento. Querer abrir a porta e sair mas ter que ficar. A campainha toca. Toca sempre. Ninguém tem a chave. Há sempre uma “irmã” para destrancar o trinco. Lá fora, o sol brilha.
- Quando terminar o curso vou casar. Quero ter pelo menos dois filhos…
- Casar?! Deus me livre! Acho que se ficasse grávida apanhava um trauma!
- Sou contra o aborto.
- Olha, eu sou a favor.
Volta-se aos livros, aos conceitos, às ideias. Por agora não se debate mais nada, não se sonha com o que se quer alcançar. A campainha toca. Fecha-se um caderno, abre-se outro. O desfolhar das páginas perturba a paz impregnada de stress, o lápis sublinha, mais uma vez, a frase maldita, o preconceito adquirido, mas brevemente esquecido, de que a totalidade das coisas se resume à junção de tantas outras. Economia, filosofia, anatomia. Gritos reprimidos abafam estojos revirados. Não se pensa no futuro, pensa-se no presente. Vão-se adiando planos, crenças de uma infância e de um tempo que hoje, trinta anos volvidos, parece estar perdido em outros séculos. Primeiro o conhecimento, depois a tradição.
Vive-se entre o céu e o inferno, entre o que se julga correcto e o que é dado como falso. Alimenta-se a alma, não mais restringida aos compromissos do lar e aos dogmas da igreja. Caminha-se para a emancipação, ainda que por entre as dores do parto e as paixões pelos homens. Mas não se crê – ah, não se crê mesmo mais! – que está na origem todos os males do mundo. Por mais que ainda se acolha o recato, as paredes continuam a ter ouvidos. Para as coisas aqui de dentro e para o mundo lá de fora.

considerações