quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

O Véu Pintado





Grande entrevista realizada entre Janeiro e Junho de 2008, no âmbito da cadeira de Jornalismo Escrito II, com os devidos agradecimentos a todos os que me auxiliaram na sua execução e apreciação e ao blogue de onde retirei a ideia para o título.




Cada imigrante traz a sua história de necessidade e sonhos. Mas no momento em que a China vive um dos períodos mais prósperos dos últimos séculos, os seus habitantes continuam a querer partir para a Europa, muitos deles para Portugal. Surgem como sombras junto dos grandes restaurantes e das lojas de marca, mas fazem sucesso num país que procura em ânsias o barato e de fácil consumo. Vêm também, contudo, os seus intelectuais, os seus estudantes. As razões são variadas, mas mantém-se a esperança - ou a ilusão - do sucesso. Um viajante ocidental comentava, no século XIX, que o passado da China não tem História, apenas estórias. Talvez estas sejam mais algumas, num futuro próximo…

Lili sorri. Sentada na mesa do fundo do seu restaurante, prepara-se para comer uma torrada bem tostada com pouca manteiga. Aparenta 30 anos, o rosto é rechonchudo, sem ser gordo, o tom de pele a puxar o amarelado, os olhos em bico. Facilmente se lhe adivinha a nacionalidade! Veste uma blusa de riscas azuis sobre um colete da mesma tonalidade e o cabelo, negro, apresenta-se cuidadamente preso em rabo-de-cavalo, sem que uma madeixa se desprenda da perfeição do penteado. Olha para as visitas com atenção e curiosidade, não mostrando qualquer receio quando lhe perguntam se pode responder a algumas perguntas. Sem aprumos ou arrogâncias, em pouco tempo descreve tudo o que pode com facilidade, destaca pormenores, refere situações, parecendo não temer o que procuram saber por ela. Característica rara na comunidade dos chineses que vivem actualmente em Portugal! A maioria nem aprende a língua, mesmo depois de passados vários anos no território e de diversos negócios montados. Mas Lili aprendeu japonês, espanhol e português. E gosta de conversar sempre que pode! Lili sorri quando recorda a terra natal ou as experiências que foi vivendo por toda a Europa. Não há nada que não a faça sorrir…
O ambiente que a rodeia não é silencioso! Bem ao lado do restaurante existe uma paragem de eléctricos que, de tempos a tempos, interrompe as conversas com os sons das travagens e os gritos animados dos passageiros que entram e saem em euforia. À tardinha, o sol trespassa as paredes envidraçadas e aquece o espaço, oferecendo um toque primaveril ao cenário. Uma rapariga jovem estuda numa mesa, quase encoberta pelo sol. A televisão está ligada, mas o som é quase nulo. Acompanha-nos uma antiga novela brasileira.
Tratam a proprietária por Lili, mas o seu nome verdadeiro é Zhao. Mudando para um país tão distante da pátria, não se perdem apenas as referências culturais! Numa estranha operação travesti, passa-se a viver numa outra pele: o imigrante que tem um restaurante, o chinês da loja dos 300, o João que afinal se chama Chen Yong Yong. Entre estas comunidades tornou-se corrente usar um apelido ocidental, em grande parte porque os portugueses não conseguem articular a peculiar pronúncia chinesa ou simplificam para algo que lhes seja semelhante. Zhao transformou-se em Lili!
Sorridente e interessada, vai desvendando a vida que deixou para trás. Partiu de Xangai há mais de 7 anos, uma cidade, descreve, «moderna, com muito movimento, muito limpa», onde a noite é extraordinária, com «muitas discotecas, abertas até às 6 da manhã». Entrou na Europa como estudante e esteve em Espanha algum tempo. Depois, entre 2000 e 2001, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras português criou nova legislação e ela decidiu tentar a sorte no país vizinho. Tem dois filhos, uma menina com cinco anos e um rapaz de um ano. A primeira voltou para a China porque a mãe, com a loja, não tinha quem cuidasse dela e, além disso, preferia que a pequena aprendesse chinês. Gostava que a filha estudasse para advogada e o filho para médico, mas na Inglaterra ou na América. «O estudo em Portugal é muito pior que na China», comenta, além de que os chineses «esforçam-se mais» e, por tal, «parecem mais inteligentes».
Para Lili tudo se resolve pela internet. É no ciberespaço que fala com os amigos, a família, clientes, vê receitas, procura sítios que ainda não conseguiu visitar. Ao chegar a Lisboa, onde viveu cinco anos, abriu uma loja. As «tias», como chama às senhoras que foi encontrando, ajudaram-na. Aprendeu português ao balcão, a falar com os fregueses, e gostava de estudar a língua oficialmente para conseguir o visto de residência de cinco anos. Agora vive em Coimbra, uma cidade mais segura e mais calma que a capital, onde por duas vezes lhe roubaram o telemóvel, em que as pessoas são mais «simpáticas» e «boas» e os «jovens estudantes» trazem alegria e enchem o restaurante nas noites da Queima das Fitas.
De início teve uma loja, mas o baixo preço dos produtos não suportava as rendas que tinha a pagar. A restauração surgiu-lhe como um empreendimento mais simples e lucrativo, mas reconhece que a abertura do centro comercial Fórum lhe roubou muitos clientes. O restaurante que dirige actualmente na baixa, na rua do Arnado, escapa hoje, assim, à lógica estereotipada da decoração chinesa! Em resultado do declínio da procura, a casa sofreu alterações recentemente e reabriu com um visual completamente ocidental, aglomerando um balcão de pastelaria. Os tons escuros tradicionais e os quadros com paisagens de planícies muralhadas são agora substituídos por um design moderno, em tons de pinho, com mesas sustentadas por pernas de aço e uma estrutura lisa, suave, sem adornos. Só a fachada continua a remeter para a essência típica do lugar, assim como os ornatos orientais na porta vidrada da entrada.
O tema da ASAE leva Lili a acelerar o ritmo das palavras. Não teve problemas com eles porque não tem «medos» e os inspectores «são simpáticos e explicam as leis». Num instante, começa a descrever o sistema de limpezas da casa: de dia, de noite, ao fim de semana, ao fim da tarde. Tiveram também que substituir as colheres de pau pelas de plástico. Explica que a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica fechou todos os restaurantes chineses «maus» em 2005.
Lili só perde o sorriso quando lhe perguntam se tem conhecimento das máfias da imigração. Fica tensa, aguarda alguns segundos antes de responder. Quando o faz, torna a contar a sua chegada a Espanha como estudante, interessada apenas na aprendizagem da língua. A discussão é cortada. Não conhece ninguém nem nunca ouviu contar histórias de viagens ilegais para Portugal ou para outros países do ocidente. O rosto redondo e animado esmorece, fica séria e desconfortável. Pela televisão, uma vedeta do jet-set comenta a vida da sociedade cor-de-rosa. Parece que o dia ficou mais escuro lá fora.
Os portugueses são o povo mais simpático que conheceu. Já visitou a França, a Itália, a Holanda e a Espanha, sempre de férias, e refere que em terras Lusas «se alguém cai na rua, logo pedem ajuda». Este é o melhor país por onde já passou, apesar de o notar «muito sujo», ao contrário de Xangai, e do estranho costume de ter que se esperar sempre que se vai aos correios ou a outra repartição pública. Aqui não sente que a olhem com preconceito, juízo que acalentou dos holandeses. Tem amigos chineses e portugueses, convive o mais que pode, ainda que o restaurante não a liberte o suficiente para poder passear como fazia em Lisboa.
Longe de casa e apesar do trabalho constante que não lhe permite ter mais ocupações, continua a seguir as festas tradicionais chinesas, sobretudo pela televisão. Juntam-se cinco a dez amigos para comemorar e, por vezes, os clientes ficam a assistir. Quando há casamentos, vão à embaixada, reservam grandes mesas para os festejos e oferecem um envelope vermelho com dinheiro para os noivos, a cor da felicidade. Tudo se processa à semelhança de Portugal, menos os enterros. Lili comenta, pensativa, que essa é uma dúvida frequente dos portugueses: onde são os chineses enterrados, se sentem necessidade de um cemitério próprio! Simplesmente, explica, preferem ter a sua última morada na terra natal. Por tal são cremados e um familiar leva as cinzas de volta à China.
«Os chineses são muito trabalhadores e não fazem mal a ninguém», finca, «não são como os outros estrangeiros». O sol já desce, um autocarro para, os passageiros entram. Lili recebe uma nova visita, um chinês seu amigo. Ainda não tocou na torrada.

Por debaixo do véu
O caso de Zhao é bastante excepcional. Quem procura imigrantes do país da bandeira vermelha estrelada, sobretudo os que estão ligadas aos negócios da restauração ou do comércio, tem que se preparar para ouvir vários «nãos» ou enfrentar um olhar desconfiado e respostas monossilábicas. O problema reside na dificuldade em aprender uma língua latina, herdeira de uma estrutura silábica e gramatical que escapa à lógica dos tons e dos caracteres chineses. Outro obstáculo insere-se na cultura taoista, onde a ideia de uma pessoa falar sobre si própria é encarada como um defeito de personalidade.
A explicação é-me facultada pela intérprete que me acompanha em algumas das entrevistas. Tan Queming é professora de Língua e Cultura Chinesa na Universidade de Coimbra e é por meio dela que os chineses não falantes de português que vamos encontrando vão acolhendo, ou não, a ideia que nos traz aos seus locais de trabalho. Falante nativa, Tan insere-se com facilidade no meio, desperta as pessoas para as suas origens - cujo cenário que as envolve (as lanternas vermelhas, os quadros de montanhas e dragões, o peculiar desenho da escrita em carácter chinesa) já remete - desviando-as do quotidiano sussurrar de um linguajar que desconhecem. Por norma olham para mim com desconfiança. Consigo sentir-me uma estrangeira no meu próprio país! Invariavelmente olho em redor, procuro aquele ambiente com cheiro a incenso e revestido a estampados dourados que os filmes americanos parecem querer transmitir. Cheira-me quase sempre a lixívia, a limpeza. Quando os questiono sobre a língua portuguesa, perguntam-me se sei falar chinês. Arranho um Olá/Ni Hao ( ) tímido e mal articulado que não provoca grande efeito. Mas lá começam a falar…
A senhora Hong vem de uma terra onde todos os anos se comemora um Festival Internacional de Cerveja. Tem um corpo e um rosto magros, uma postura escorreita, algo embaraçada, um penteado a lembrar os anos 80, só aceitando a nossa presença ao fim de alguma insistência. Da Shandong que deixou há 8 anos recorda com saudade o seu mar e o marisco dos pratos típicos, a paisagem montanhosa e os jogos de qingdao (vela). A última vez que teve condições de viajar até à China foi em 2003. Nos outros anos, não podendo tirar mais dias de férias, procurou visitar o país onde hoje vive.
À semelhança de Lili, habitou em Lisboa algum tempo. Agora dirige um restaurante na baixinha de Coimbra, cidade que aprendeu a gostar por lhe recordar, com o seu rio e as suas pontes, a terra natal. O filho, com cerca de 20 anos, já é trabalhador, mas tirou um curso de português há algum tempo. O jovem move-se de mansinho atrás de nós, colocando as mesas vazias para a hora de almoço que se aproxima. Terá o seu metro e setenta, usa óculos e tem os traços próprios dos asiáticos. Pergunto se, de seguida, também posso falar com ele. Obtenho um não sorridente como resposta.
À medida que desenrolo o meu leque de perguntas estabelece-se uma conversa lateral em que não sou incluída. Tan e Hong falam em mandarim, uma língua que domino muito pouco, dando outros contornos às questões que coloco. Com alguma atenção vou assimilando uma ou outra palavra: Zhongguo (China), daxue (universidade), zhe (este), etc. A sra Hong relaxou, libertou-se da tensão na postura e nas palavras. Um rastro de brilho encanta-lhe os olhos e embeleza-lhe o rosto. Parece comentar características da sua terra e, talvez, até de Coimbra. Peço que me expliquem o que foi dito, mas a minha intérprete também tem problemas com o português. Neste contexto as respostas não vão variando. «Sim, gosto» é a mais comum! Seguem-se o «Não» e o «Sim», simplesmente. Tan Queming avisa-me que estou a demorar e é chegado o momento de irmos embora.
Os caracteres da entrada traduzem-se por o «Luxuoso», mas o nome já havia sido designado quando o restaurante foi montado e não foram autorizados a mudá-lo. O marido da sra Hong «é bom cozinheiro» e tem gosto em «inventar coisas», por isso optaram por abrir este negócio. Os clientes parecem gostar da comida, «principalmente dos vários pratos com molho chinês». Explica também que «as lojas e os restaurantes estão relacionados com a cultura», são uma forma de importar as tradições e os costumes para os países onde os chineses decidem trabalhar. Por isso, nunca pensou fazer outra coisa, nem procurar outro modo de vida.
Os portugueses «são muito amigáveis». No restaurante aparecem sobretudo estudantes e alguns, inclusive, tentam falar um pouco de chinês, apesar de não passarem do Ni Hao ou do Xiexie (obrigado). Hong fica contente mesmo assim. Caminhando na direcção da saída, torno a vaguear por terras do sol nascente. Tan e a minha entrevistada continuam a conversa que iniciaram na minha presença. A sala está finalmente preparada para abrir aos clientes, as mesas colocadas com aprumo e decoro, os condimentos concentrados no centro, entre os pratos, a limpeza concluída sem mácula espalha determinado cheiro de rosas.
Um balde esquecido a um canto aquando a minha entrada desapareceu. O mesmo aconteceu com o filho de Hong. Do interior da cozinha ouve-se o bater de panelas e tachos, os empregados vão passando atarefados. Não vejo nenhum europeu entre os trabalhadores, à excepção do carteiro que entretanto veio deixar o correio. Ao contrário do espaço da Lili, o «Luxuoso» obedece a todos os critérios essenciais da decoração de um restaurante chinês. Mesas em tons de carvalho, grandes quadros de paisagens chinesas, portas e janelas vidradas com ornatos orientais. A sensação de que Portugal se encontra longe, muito longe, talvez do outro lado do mundo… Tan comenta, já na rua, que a sra Hong lhe confidenciava que jamais falaria para uma entrevista se a jornalista não tivesse vindo acompanhada.
Alguns metros em frente, na rua da Sofia, entramos numa loja de artigos variados cujo nome inscrito no toldo rapidamente se revela publicidade enganosa: Augusto Neves Ferragens. A proprietária explica que, à semelhança de Hong, não foi autorizada a mudar a nomenclatura. A loja, de resto, não varia do que normalmente é associado às congéneres, exibindo todo o género de objectos, desde maquilhagem, roupas a malas de viagem nas prateleiras superiores. Uma apresentação bastante ordenada e composta, num espaço amplo e de fácil visibilidade que em tudo se assemelha à pessoa que a dirige. A dona terá perto de 40 anos, bem vestida, o cabelo esticado à maneira ocidental. Exibe um olhar sério, peremptório, está no seu território e ninguém a pode enfrentar. A expressão é dura. Não gosta de nos ver ali.
É novamente Tan que inicia a conversa. A argumentação calorosa em mandarim transmite-me um diálogo difícil. A proprietária fala algum português, mas continua a discussão na sua língua materna. Procura desviar-se, segue para outro canto da loja, conserta uma série de peças de roupa que já estavam arrumadas. Não me olhou nos olhos, mostrando-se sempre ocupada com algum afazer, algum objecto fora do sítio a precisar de correcção, passando por mim sem grande cerimónia. A professora segue-a, refere que aquela gente é «muito difícil». Vai puxando trivialidades, pede-me para aguardar. Eu aguardo! De novo a sensação de ter entrado noutro mundo, apesar de agora ver uma empregada portuguesa ao fundo do corredor. Nem lanternas, nem fitas vermelhas. Aquele lugar também levou a sua dose de Ocidente.
Encontramo-nos ao balcão. As clientes vão passando, compram ganchos e elásticos para o cabelo. Tan diz-me para fazer as perguntas principais e de forma breve. Mas pouco avanço até começar a sentir pontadas nas costas para me apressar. A senhora chegou a Portugal há 15 anos e foi aqui que os filhos nasceram. Gostava de voltar para a China, agora que o país está a desenvolver-se bastante economicamente, mas a família habituou-se demasiado ao lugar onde cresceu para querer regressar.
A escolha de Portugal para residência foi marcada pela anterior presença de familiares. Estes são os únicos que visita com frequência, ao fim de semana, visto que os lucros da loja não lhe permitem fazer grandes viagens. Conhece outros chineses, mas a relação não é próxima. Nova pontada! Escolheu este negócio porque existem muitos armazéns e conseguem vender produtos não só da China como também de outros países. Em geral, «tudo vende bem».
O olhar é ausente. Observa toda a loja sem nunca se fixar em nós. Refere que o país hoje está muito diferente, que continuam a comemorar as festas chinesas e, inclusive, fecharam a loja no dia do ano novo chinês, que este ano foi a 7 de Fevereiro. A reacção mais espontânea surge quando lhe pedem que fale sobre o preconceito dos portugueses. Enruga o rosto, abana a cabeça em sinal negativo. «Os portugueses são muito bons», comenta, mas sente que têm algum preconceito pelo estrangeiro, o que vem procurar emprego em Portugal e cria o seu próprio meio de sustento. Nova pontada!
Sou convidada a sair. Tan fica para trás, ainda a tentar puxar conversa. Olho para o relógio. Não terá passado meia hora, grande parte da qual a tentar convencer a senhora a falar. Já terei andado uns 500 metros quando me apercebo que, no meio de tanta insistência para fazer apenas as perguntas essenciais e ser rápida, não cheguei a saber o nome da dona da loja.

Como as folhas que caem
Ming chegou a Portugal por amor. Há quase cinco anos, este médico de medicina tradicional chinesa e ocidental, originário da província de Jiangxi mas a trabalhar em Cantão, deixou a China natal e mudou-se para Cantanhede. A mulher, Mafalda, é enfermeira e trabalhou durante algum tempo naquele país. Hoje têm uma filha pequena e outra quase a chegar. Mostra opiniões vincadas e ideias concretas sobre os temas que afectam sobretudo o nosso país, mas também sobre aquele que deixou. Actualmente só possui autorização para exercer medicina tradicional chinesa, mas está tirar um curso de português na Universidade de Coimbra e espera poder voltar a trabalhar com medicina ocidental. Fala fluentemente, ainda que a conversa vá dando passadas ao inglês e ao mandarim. Da China sente saudades da liberdade na condução. No seu país «não há tantas regras».
Sentamo-nos na esplanada do Centro Pastoral Justiça e Paz, perto da universidade. Ao fundo vê-se o rio, a ponte solitária e o sol a bater na água, expelindo formas caleidoscópicas ao olhar do espectador. O verão pressente-se, começou há pouco a primavera. Umas colegas de Ming vão sentar-se nas mesas mais afastadas. Ele olha, pensativo, para a paisagem. Para Ming tudo aqui é diferente: a comida, a forma das pessoas trabalharem… Na China, «os Correios, os Bancos, quase nunca fecham, mesmo ao fim de semana»; lá, pode mudar a fórmula dos medicamentos, adequando-os a cada doente, «mas em Portugal já está estipulado»; quase não há clínicas privadas, «os médicos só pedem o dinheiro dos medicamentos»; «não têm tantos impostos»; «alguns líderes ouvem a opinião do povo» e procuram mudar as coisas.
A situação do fecho das Urgências abalou-o. Comenta que «antes de vir pensava que Portugal era um país de liberdade e democracia, porque na China as pessoas não sabem o que isso é». No que toca à liberdade, acha que «a China chega a ser mais livre que Portugal»! A maioria da população estava contra o fecho dos Serviços de Atendimento Permanente, contudo o governo encerrou-os na mesma. «Também é ditador», afirma, «pode-se falar» sem medos «mas as coisas estão na mesma», o Estado «não quer saber o que o povo pensa».
Ming explica que em Portugal existem três tipos de chineses. Os estudantes (que regressam), os que abrem lojas e restaurantes e os que ficam por causa do casamento. Por norma, a maioria permanece porque julga «ser mais fácil ganhar dinheiro, devido ao euro». Na China, uma pessoa normal ganha entre 50€ a 100€, em Portugal o salário chega aos 480€. Existe a ideia de querer «sempre uma vida melhor», enquanto os portugueses se contentam mais com o que possuem. No entanto, tendo amigos nessa situação, não compreende os ilegais! Consegue-se viver bem no seu país, desde que haja esforço. Uma viagem fora da regularidade pela Máfia chinesa ronda os 15, 20 mil euros e quando os imigrantes «não conseguem o que querem aqui, têm dificuldade em voltar». Muitos suicidam-se, «perdem a esperança». Esperam que na Europa seja tudo fácil e constatam depressa que isso não passa de uma ilusão.
Vai olhando para mim em busca de aprovação. A forma como descreve o comportamento dos compatriotas lembra-me um filme recente dos actores Edward Norton e Naomi Watts, inspirado num livro de W. Somerset Maugham chamado O Véu Pintado. A narrativa desenrola-se na China revolucionária dos anos 20. Em termos breves, relata a história de um casamento construído sobre uma série de enganos e de como as ilusões de cada um conduziram à mágoa, ao adultério e à vingança. Na ânsia de verem no outro aquilo que desejavam, mas ao qual nenhum correspondia, não se aperceberam que também podiam ser felizes com o que possuíam. Não tendo um final muito feliz, desenvolve a ideia da redenção pelo reconhecimento dos próprios erros. As imagens de uma China rural e pura contribuem.
O comportamento do chinês em Portugal não difere, em certos aspectos, daqueles que nunca emigraram. Ming refere amigos que, mesmo fora do seu país, continuam a não se conseguir abrir às ideias exteriores, praticando a sua vida e a sua forma de pensar como se estivessem na China. Vários permanecem aqui três, quatro anos sem nunca tentarem aprender a língua do território que os acolheu. Alguns ilegais que conhece ainda não procuraram conseguir documentos ou sequer a carta de condução, mas já têm uma loja. No seu geral, os jovens que vêm e montam negócios não têm tempo, não fazem mais nada. Ming comenta, rindo, que fica assustado com os namoros que vai presenciando. Conhecem-se e casam logo depois. Não entende!
O Tibete invade a discussão quase sem darmos por ele. Assumindo a pose de professor, superior e sapiente, pergunta se os portugueses sabem quando o território foi inserido no Estado Chinês. A maior parte das pessoas «não sabe história e julga que o Tibete foi ocupado no século XX», quando na realidade a união se deu no século XVII, esclarece. Apesar de ser contra a separação, não acredita que o Dalai Lama seja responsável pelas manifestações independentistas naquela região. «Talvez os americanos», quem sabe? Enquanto o Ocidente não for ao território ver o que efectivamente se está a passar, não se deve cair no facilitismo da especulação. Ming comenta ainda que «é impossível começarem tantas manifestações ao mesmo tempo».
«Os chineses que estão fora», destaca pensativo, «acham sempre que vão voltar para a China». Por isso as crianças são enviadas aos cuidados dos avós e dos tios para se educarem naquele país, por isso os mortos são cremados e enviados de retorno a casa. As pessoas, cita, quando morrem, «são como as folhas que caem. Voltam para as raízes». O provérbio chinês leva-me a perguntar se também ele, mesmo casado e com família em Portugal, ainda pensa em voltar. Ming encolhe levemente os ombros, faz um sorriso meio tímido, meio envergonhado, e confirma: também ele gostava de voltar para casa!
Desta entrevista tomo o contacto de Catarina, colega de Ming no curso de português da Faculdade de Letras. A jovem de 22 anos, bonita, de longos cabelos negros e expressão doce, cumprimenta-me com mais curiosidade que receio. Está em Portugal para aprender a língua, de modo a complementar o curso de Direito que tirou em Macau, cidade natal. Explica-me que apesar da separação administrativa de há quase 10 anos, a lei macaense ainda tem muitos pontos em comum com a Portuguesa, de forma que o conhecimento do português se revela necessário, sobretudo para procurar trabalho. Ming acompanha-nos! Ajuda a traduzir e a estruturar algumas frases nas quais Catarina tem dificuldade em expressar-se. Interfere quando pergunto sobre os chineses em Portugal. De realçar: as pessoas de Macau não são chinesas, são macaenses!
Catarina, que na realidade se chama Leong Lai Fan, sorri ao comentário, mas só mais tarde refere que, apesar da situação de região administrativa especial de Macau, se sente chinesa. O nome ocidental foi-lhe oferecido no tempo da escola portuguesa no território. Comparando as duas terras, não nota grandes diferenças, inclusive no sistema de ensino que se rege pelas mesmas estações. Mas apesar do forte desenvolvimento e das rápidas mudanças, nota que na chamada «Las Vegas do Oriente» existe uma «falta de equilíbrio entre ricos e pobres».
Gostaria de voltar a Portugal em Setembro, tentar ter algumas aulas na faculdade de Direito, mas destaca que tal «é muito complicado». A situação deixa-a pensativa, hesita, não sabe bem o que dizer. Reflexo de decisões que ainda não tomou e que tem procurado adiar. Pouco depois já sussurra que não, não vai «voltar em Setembro».
Olhando ao que deixou há perto de um ano, sente sobretudo falta da família e, concordando com Ming, de comida correctamente confeccionada, pois «os portugueses não cozinham bem os alimentos». Em Coimbra, apesar de achar a cidade tranquila, não encontra divertimentos. Considera o curso de português bom, melhor que o que uma amiga está a tirar em Lisboa, mas a elevado número de cadeiras não lhe permite aprender tão bem a língua quanto desejaria. Ao mesmo tempo, não consegue «comunicar com os jovens». Pergunta-me o que fazer, porque é que as pessoas da sua idade parecem fugir ou sentir-se pouco à vontade na sua presença. Apenas os mais velhos demonstram interesse, como a família com quem vive neste momento e que a trata «muito bem». No seu círculo de amigos em Portugal acaba por incluir apenas vários japoneses e outros colegas asiáticos, quando gostaria de poder praticar com alguém tudo o que tem aprendido.
Balbucio algumas razões, mas não lhe sei responder de todo. Catarina conta que no contacto com os portugueses, estes costumam ter apenas interesse em saber coisas relacionadas com a China e o facto de ser macaense contribui para criar alguma proximidade. Por outro lado, ao chegar a Portugal apercebeu-se que o comportamento dos serviços no tratamento dos vistos chineses em comparação com os dos restantes estrangeiros é diferente. No geral, parecem ser «mais sensíveis, pois têm uma visão da China como de um país sem liberdade», reflecte. Mas na verdade, também ela só conheceu melhor aquela terra «depois de 1999», notando que o país «hoje é muito forte, mas ainda tem problemas».
Um deles é o Tibete, mas também o Taiwan. Estas são questões interessantes e sobre as quais gosta de discutir com os colegas. Sente o Tibete como parte da China e acha que a maioria dos seus habitantes não deseja a independência. Existem pessoas «que querem chamar a atenção», mas outras, talvez a maioria, não, explica. O seu rosto acalenta uma seriedade nova, diferente do ânimo que a tinha conduzido até ali, mostrando opinião firma num assunto já conscientemente pensado e debatido. O próprio Dalai Lama confirmou, reforça, que «o Tecto do Mundo», como também é conhecido o Tibete, existe enquanto parte da China! Ele «é líder espiritual, simplesmente, e há muitos que concordam com ele». Toda a contestação recente resulta de «um problema histórico», por um Estado tradicionalmente teocrático se ter transformado num estado laico.
Catarina descreve ainda um pouco de Macau, constatando que actualmente as pessoas saem apenas para estudar, não existindo mais dificuldade na conquista de um emprego. Em Julho, quando regressar, vai preparar-se para ver os Jogos Olímpicos, evento que tem mobilizado o país e que vê neles uma oportunidade de se mostrar ao mundo. Leong já comprou o bilhete e gostava de assistir sobretudo basquetebol e ginástica. O espectáculo mundial não é, afinal, simplesmente uma actividade desportiva, mas «um evento com interesses económicos».
No terceiro piso da Faculdade de Letras, onde nos encontramos, a circulação aumenta, as aulas vão recomeçar. Apesar das dificuldades, Catarina entusiasma-se e vai fazendo perguntas num português arrastado mas coerente. Invertem-se os papéis. Porque é que os jovens portugueses não falam com os chineses?...

Em números
Muitas das informações que os vários imigrantes facultam sobre a sua situação em Portugal são elementos de afirmação enquanto grupo junto da Liga dos Chineses de Portugal. O presidente da associação, Y Ping Chow, destaca que a comunidade vive bem em Portugal, sendo este um dos países da Europa onde os chineses são mais bem aceites. As queixas residem sobretudo, esclarece, em alguma «má interpretação da língua portuguesa» ou em «pedidos de reagrupamento familiar, que a embaixada leva muito tempo a resolver».
A Liga lida também com alguns problemas mais específicos, nomeadamente com os pedidos de empresários no que toca a pessoal verdadeiramente especializado, sobretudo no ramo da restauração, em que a Embaixada da República Popular não sabe fazer verdadeira triagem. Outra questão prende-se com a falta de amas qualificadas para não só cuidarem das crianças como também introduzi-las na cultural chinesa, de modo a que os pais não se vejam forçados a enviá-las, ainda crianças, para a terra mãe, de onde voltam na altura da escolarização obrigatória.
Portugal possui ainda um sistema de legalização bastante simples, em que basta quase só estar no território e ter emprego para conseguir o visto (a maioria dos casos de imigração ilegal vêm por intermédio de outros países e não directamente). Aliam-se ainda outras vantagens! Com uma tradicional relação com a China, Y Ping Chow destaca que este «é um país amigo», onde os chineses não «se sentem tão discriminados como noutros» Estados europeus. Além disso, sendo «o nível de vida inferior, o produto chinês é facilmente colocado», esclarece.
Em termos de comparticipações, o Estado chinês não atribui nenhum tipo de abonos aos seus emigrantes, contudo têm existido incentivos à internacionalização de empresas, principalmente as privadas. Em Portugal, esses empreendimentos resultam em lojas e em armazéns, por exemplo, de produtos chineses.
O presidente da Liga refere ainda a existência de cerca de 20 mil chineses, legais e ilegais, no país, mas o facto é que não existem dados concretos. O Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, num artigo de 2007 sobre a imigração chinesa em Portugal, adiantava que constituiriam, segundo dados de 2001, 1,7% da população estrangeira. Em termos gerais o texto, Dévoilement des liens transnationaux des migrants chinois au Portugal, da autoria dos investigadores Pedro Góis, José Carlos Marques e Catarina Oliveira, desenvolve algumas páginas em torno da diáspora chinesa no nosso país, as suas origens concretas e outras curiosidades.
Apesar de serem vistos enquanto comunidade, os chineses não constituem um grupo homogéneo, estando bastante dispersos por todo o país. O seu crescimento, no entanto, tem sido contínuo! Provêm especialmente da província de Zhejiang, vizinha de Xangai, e, por norma, passam por vários países, como Espanha, antes de chegarem a Portugal, utilizando visto de turista. A maioria chegou nos anos 90 e, em 2001, beneficiou de uma alteração da lei da imigração que permitiu que cerca de 3900 pessoas adquirissem a autorização de residência. Muitas vezes, o país é apenas um local de passagem para outros locais, como a Inglaterra ou os EUA.
A história desta imigração, iniciada nos anos 20 por meio do comércio ambulante, teve três grandes momentos. O primeiro chegou após 1975, de Timor, Angola e Moçambique. O segundo provém da China continental, entre os anos 80 e 90, das províncias de Zhejiang, Canton, Quizhou e Heilongjiang. Por fim, o terceiro, correspondeu, após a desvinculação a Macau, a pessoas de etnia chinesa mas de nacionalidade portuguesa. Os negócios que vieram fundar em terra lusas sobrevivem não só através dos contactos com a China mas também com outros imigrantes. A família é um elemento essencial.

Do Este para o Oeste
Quando João, ao fim do primeiro ano em Portugal, procurou tratar dos papéis para a regularização, teve que levar um dicionário. As pessoas foram simpáticas, ajudaram. Como não conseguiam pronunciar bem o seu nome, arranjou outro, mas na realidade chama-se Chen Yong Yong. Um rapaz roliço, de rosto simpático e entusiasta, vestido com um pullover azul escuro, recebe todos os clientes com despacho, nunca mostrando desânimo ou desalento. Atrás de si, um pequeno cartaz anuncia que as peças, a serem devolvidas, têm que respeitar um prazo de sete dias. Por vezes não sabe como falar, mas esforça-se, não perdendo na simpatia. O português é lento, meio atrapalhado, aos suspiros de arrasto por uma palavra apenas, mas consegue ser coerente. Tan também veio, mas deste vez quase não se manifesta.
A loja «Yejin» perde-se nas ruas e ruelas da baixinha coimbrã. Perto da Queima das Fitas, um grupo de caloiros é arrastado, aos gritos, por esses recantos, assustando os que, desprevenidos, ainda não conhecem as tradições da terra. A loja, por dentro, é pequena e exígua, repleta de todo o género de roupa feminina e seus acessórios. Ao fundo, uma escada íngreme conduz a uma pequena varanda no andar de cima. Uma lanterna chinesa embeleza o hall de entrada, confere-lhe um toque típico completado pelas figuras dos empregados de rosto asiático que atendem à entrada. João é um deles.
A penumbra dos prédios velhos e obscuros, apertados entre si, não deixa que o sol penetre no interior do espaço. As luzes estão acesas. João conta que está em visita a uma amiga. A sua vida é na Ericeira, onde tem duas lojas, uma delas em parceria com o pai. Chegou a ter um restaurante, mas o negócio faliu. Não perdeu, no entanto, a esperança de tornar a ser Chefe numa cozinha sua. Os seus olhos brilham nessa expectativa. Adora Portugal, não tem interesse em voltar para a China que deixou. Aqui, aliás, já vive toda a sua família. E a noiva, com quem vai casar em breve.
Natural da província de Zhejiang, foi embora há 8 anos. Não tem saudades de nada em especial, Portugal faz-lhe lembrar a terra natal e já existem negócios de produtos chineses suficientes para se sentir em casa. Gosta de carros e de futebol, torcendo hoje pela selecção nacional portuguesa. Na Liga, acompanha e vibra com o Benfica, principalmente agora que têm um chinês na equipa. Tem amigos brasileiros e chineses, mas dá-se sobretudo com brasileiras.
Ri-se com vontade ao afirmar que apenas sente falta de dinheiro. Um sorriso jovem, sem receios, uma aura leve, sem as tensões das desconfianças. Nos anos que já contou no país, só teve oportunidade para dois meses de férias. Refere que «quando se chega a Portugal não é fácil», porque só podem pensar em amealhar o seu. Por isso nunca pensou em estudar, nunca teve tempo. O português que sabe aprendeu-o à noite, sozinho em casa, a treinar com livros. Das duas vezes que voltou à China, encontrou um país transformado, onde «as pessoas vestem de maneira diferente, são mais educadas e vestem roupas melhores porque estão mais ricas». Outra das razões para ficar prende-se com crescimento do preço das casas naquele país. Compensa «permanecer em Portugal».
Uma garota dos seus 15 anos compra um pequeno casaco negro. João desvia a atenção para a jovem que, de rosto baixo e apressado, paga e vai embora sem grandes cumprimentos. A loja está vazia! A dona encontra-se em Setúbal, por isso o ambiente é de descontracção. João e Tan iniciam uma conversa apenas deles, separando-se do olhar do espectador que os observa. Uma empregada de naturalidade asiática chega da rua e procura aperceber-se do que se passa com aquelas estranhas visitas, mas mantém-se à parte. Lá fora, alguns pombos aventuram-se em voos picados pelas bermas dos toldos, exibições algo desequilibradas pelo peso de várias tardes a bicar no milho que os mais idosos atiram para os largos. A loja da frente publicita na montra um vestido de noiva. É a rua das lojas de noivas! Há poucos séculos, todos os negócios daquele recanto à beira-rio se estruturavam por ruas. A rua do ouro, a rua da prata, as judiarias. Chegou a vez das Chinatowns.

1 comentário:

H. disse...

Bem, obrigada pela «distinção» num trabalho como este. As histórias são interessantes!