quarta-feira, 20 de maio de 2009

De um porto que se percorre em crises de personalidade



in Jornal Tribuna de Macau

Foi abrigo de piratas e lar de tancareiras. Hoje vai perdendo a vida que lhe pertence por tradição, no recolher das velas dos pescadores


Das fotos antigas de um Macau ainda por esquecer, recolhe-se uma paisagem infindável de barcos de enorme porte, que também eram casas, que também tinham nomes, mas que não contrastavam com a imponência das construções da nova era. Eram de Macau porque respondiam à sua arquitectura, contavam a sua história e imortalizavam uma vida - uma existência - que ia além das suas pontes, dos seus contornos, dos seus edifícios com cheiro a rio e da sua paisagem com sabor a oriente. No Porto Interior, uma rotina que já era velha quando nascia o Lisboa faz do dia a dia o abraçar de uma nova aventura: sobreviver, quando o mundo impele para a mudança...

O cheiro não pode ter mudado! Faz parte da pesca, do rio, da doca e de uma poluição já contida, mas nunca impedida de se espalhar pelas grades que separam a terra do seu berço e o homem da sua origem. Mascara-se a vista, recolhem-se as redes, mudam-se os trajes e os temas, porventura também as palavras, os deuses e as suas cores, mas permanece o rio, com o seu temperamento, com as suas causas e favores, com os seus rituais e as suas crenças, com a sorte e o azar de cada um, ainda que os tempos se tenham transformado e os ritmos se escrevam com outras sonoridades.

O sol também queima, o rio também brilha, a pele dos homens também curte, envelhece, ante a intensidade da faina, com o odor, ainda que em rio, dos afazeres do mar. Mas mulheres, essas, já por cá não andam, voltaram à terra. Os “tan-kás” que as criavam entraram para uma história que é de Macau e que em Macau ainda se recorda. Ficaram nos contos de Senna Fernandes, nas memórias de Leonel Barros e noutros quantos que se deliciaram em escrever sobre o rostos da terra e do rio que compuseram, durante séculos, esboços de olhares de terna compreensão ou incipiente ignorância e até de amor, múltiplo, incongruente, mas que se desfaz e esconde no Delta do Rio das Pérolas.

Também foi leito de piratas, criminosos do beco e seitas sem nome, de inspirações tão audazes quantas a memória quiser engendrar. Foi campo de mulheres e homens em exaltação do que o mundo, em guerra, poderia – quiçá – renovar, mas também daqueles que se espalharam sobre terra de estrangeiros e se inclinaram na ilusão de que sobressaiam ao seu inferior.

De mãos atadas ou de costas voltadas, do rio se marcou a fronteira que, sobrevivendo, criou terra de estranha designação. E o porto ali se deixou, impregnado do que se ficou por dizer, por ouvir e por ver e, talvez mesmo, por sentir, porque também nele naufragaram segredos que hoje ninguém poderá – ou saberá - desvendar.

Mas a história continua, porque não haveria de continuar? Novas telas se pintam, ainda que em cores de outras terras e em traços de outras gentes. Em sussurro se ouvem outras línguas, porque o global também sabe conquistar um local isolado.

O porto, despejado, revela que também ele evoluiu, encontrou outras formas de contar as suas aventuras e os seus anseios, que saíram da pena e do pergaminho de uns poucos que observavam, para uma maioria que já consegue especular, encontrar e  - quem sabe – reinventar votos de um silêncio que não é eterno, apenas obscuro e indigente. Porque o peixe continuará a crescer, a faina continuará a ir de encontro à alvorada e o que é essencial, ainda que o não se recorde, permanecerá como a âncora do que não se quer morto, apenas de visível e melhor aspecto.

No amanhecer do século, vestiu-se a cidade de cores que não as suas, de linguajares que se julgavam distantes e de formas de vida que a terra acolheu. O porto mudou! Fez-se paisagem de jogo, de mesa e conferência. Adquiriu romantismo de cinema onde só existia teatro de palco e poesia de português faminto. Morre para nascer de novo, com outra essência e outras formas, tornando a compor histórias mas de almas menos bravias, menos apaixonadas e, por tal, menos chocadas a crenças de novas gentes.

Talvez se tenha perdido a fé, o tempo e a coragem. Talvez se tenha mesmo rendido à consciência que o que era deixou de ser e em crise de personalidade viva meio perdido naquilo que ainda poderá conquistar. Os que o navegavam esquecem a sua morada e anseiam por um regresso que hoje se faz em terra e já não no rio, já não no mar. Os que o conhecem ditam-lhe a morte, que de velório já vem preparado, e esperam que a mesma paisagem com sabor a oriente, a ocidente adquira um paladar mais requintado, mais belo e mais cinéfilo, pois quem sabe o que o novo – porto – ainda trará aos que hão-de vir...

Mas o que interessa, no final? Ele ainda lá está e ainda faz parte de uma história. O conto de quem chega em manhã de estranho sol de Macau e percorre, sem memórias, o que a mente lhe oferece e em detalhe capta pequenos pedaços do que ainda está por contar. E mesmo reconhecendo o seu fim, mesmo observando marcas do que o futuro lhe trará, consegue também compor, ainda que em retalhos de pano, novas histórias de um tempo que já não lhe pertencerá.

Porque o sol ainda brilha, a pele ainda curte, envelhece, ainda cheira a peixe, a sal, ainda advinha ao mar em que o rio desagua e ainda se sente o sabor do oriente que acolheu, em 500 anos de história, paisagens tão divergentes como aquele rio que fomenta uma memória...

A do Macau que em ainda consegue ser o do antigamente!

C.G.

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