Macau é a terra dos casinos. Actualmente existem 31, 19 dos quais sob o controlo do magnata da zona, Stanley Ho. A ele, aliás, se deve a grande parte do desenvolvimento da zona, pertencendo-lhe a primeira casa de jogo da RAEM: o Casino Lisboa. Nos últimos anos, no entanto, as grandes empresas de Las Vegas descobriram a terrinha do Santo Nome de Deus, razão pela qual o território foi invadido por Venetian, Four Seasons e afins. O progresso, já diziam os antigos, tem os seus benefícios e as suas fraquezas. Uma das questões sociais que mais preocupa a sociedade de Macau é o abandono escolar dos mais jovens, que se direccionam quase exclusivamente para os empregos proporcionados pelos casinos. Em tempo de crise e de limitação da entrada de trabalhadores estrangeiros, as agências de emprego debatem-se com a falta de habilitações dos residentes para muitos dos cargos onde continuam a existir vagas. É um facto, o pessoal da terra não tem qualificações!
Entretanto, muitos dos empreendimentos que estavam para abrir este ano pararam ou continuam em slow-motion, consoante vai havendo dinheiro para as obras. Pessoalmente, a zona do Cotai só me lembra um estaleiro. Talvez a situação melhora quando inaugurar o único casino que manteve mais ou menos os seus planos, o City of Dreams (uma coisa enorme diga-se).
Não é minha intenção estar aqui a dissertar sobre os casinos e a indústria do jogo, tema sobre o qual tenho escassos conhecimentos e nem me compete a mim julgar até que ponto este tipo de negócio é bom ou não para Macau. Não sou da terra, estou cá há pouco tempo, e a bem das realidades entrei em pouquíssimos desde que aqui cheguei. É quase sintomático, encontro um escondido para cada canto que me vire. Tal como em Coimbra a cidade está completamente virada para a Universidade, Macau está completamente dependente dos casinos. Nunca vi tantas lojas de câmbio juntas na minha vida. A cidade, à noite, faz recordar uma feira popular tal é a intensidade cromática das luzes dos grandes edifícios. Talvez por ainda ser novata, tudo isto que me encanta de algum modo, dá uma vivacidade à terra que, de outra forma, mais não seria que que a cidade de província que, lá bem no fundo, parece ser e muitos dizem ser a sua verdadeira face.
Quem quiser dar uma volta pelos casinos, vai ser conduzido quase de imediato ao Venetian. Imitação de Veneza em plena China, destoa um pouco do ambiente geral, se é à procura da cultura chinesa que o turista vem. Logo ao lado há o Four Seasons, que ainda não conheci, mas que arregala tanto o olho como o anterior, que é, aliás, o maior casino do mundo. Temos o MGM, o Wynn, o Casino Lisboa, o Grand Lisboa, o Sands, o Grand Emperor, o Fishermen's Wharf, entre muitos outros. De resto, é só procurar - por aqui locais onde se possa perder dinheiro é coisa que não falta. Falta sim - segundo me contam - alguma diversificação das ofertas, essenciais ao desenvolvimento sustentável da indústria. Ao contrário de Las Vegas, onde existe mais oferta, aqui os casinos resumem-se quase só às mesas de jogo, slot-machines, hotéis, bares e restauração. O problema, julgo, não levará muito tempo a ser resolvido. As clínicas Maló vão abrir um SPA no Venetian, procurando oferecer essa variedade que muitos apontam como necessária.
Em termos muito genéricos e ponderados, acho que se pode dizer que este é o meu conhecimento da área. Os meus passeios pelo interior destes casinos são quase tão aventureiros como os que empreendo pelas ruelas apertadas de Macau. A ostentação, as lojas de luxo (não há marca que não tenha aqui uma loja), as reproduções das cidades europeias, tudo enche tanto o olhar que é difícil evitar a tentação de querer entrar e tentar a sorte.
Há uns anos ofereceram-me um livro do Saramago chamado a "Caverna". Adorei, realmente, confesso que não estava à espera que me cativasse tanto. Contudo, fiquei sempre com a noção que me tinha escapado por ali uma parte essencial da história. A teoria da Caverna de Platão não me era estranha e se era essa a analogia que o autor pretendia, confesso que a encontrei com relativa rapidez. Ficou, no entanto, ali uma réstia de dúvida que até hoje, por vezes, me assalta o pensamento e me faz divagar um pouco sobre o verdadeiro significado do livro.
As obras literárias, como tal, não são unas, tem uma fonte infindável de interpretações em que o olhar do autor é apenas mais um de entre todos os outros possíveis. Quando saiu o filme do Fernando Meirelles, "Ensaio sobre a Cegueira", uma amiga insistiu comigo e com a minha irmã para que fossemos ver. Não foi necessária muita insistência. Apesar de ambas preferirmos ler os livros antes de ver os filmes, aquela era uma história já por nós subejamente conhecida e interpretada por mais do que uma pessoa. Por isso lá fomos satisfeitas, julgo até que tivemos que o tentar fazer umas duas vezes pois o cinema estava completamente esgotado naqueles primeiros dias.
Na altura a minha amiga, tal como eu em "A Caverna", havia feito a sua interpretação, mas continuava a sentir que alguma coisa lhe escapa. Partilhou connosco as suas dúvidas antes do filme começar e pediu-nos atenção para variados momentos da história que, pelos vistos, estava bastante fiel à original: porque os santos tinham os olhos vendados, porque é que a personagem feminina nunca havia cegado. Se bem me recordo, a tese da Liliana incidia no facto da nossa atenção estar tão centrada na visão dos Media e da comunicação social em geral, que não nos apercebíamos o quão iludidos e enganados nos encontrávamos com a realidade. Por tal, até os santos, envergonhados/cegos haviam cegado. Essa cegueira branca era a cegueira do excesso de tudo: de comunicação, do mundo mediático e da ilusão da realidade que transformou a humanidade numa anedota de si mesma.
Lembro-me que viemos os 20 minutos de regresso a discutir o filme, as opiniões de cada uma a respeito. Acho que foi das conversas mais filosóficas que tivemos. Julgo que concluimos mais ou menos todas a mesma tese. Mas porque a mulher não havia cegado? Lançámos palpites: todos estavam de tal forma confiantes na sua interpretação da realidade que nem se apercebiam que já não possuíam livre arbítrio, por tal cegavam; na ilusão do que eram e daquilo a que tinham chegado, não se apercebiam que continuavam a ser sobretudo humanos, básicos; alguém referiu que até o pequenote do filme tinha sido enviado sozinho para a zona de quarentena, à sua sorte; o medo do desconhecido num mundo repleto de tudo era tal, que preferiam esquçê-lo a enfrentá-lo....
A conversa deu várias voltas, muitas das quais bastantes elaboradas e que hoje já não recordo. Contudo, na altura, a dado momento, uma de nós lançou: a mulher não cegou porque escolheu participar. No momento em que ela combateu o que lhe era dado, afirmou a sua escolha, a cegueira não a atingiu. E aí pode ver como de facto era a realidade.
Lembro-me que ficámos todas caladas meio segundo tipo a pensar: Deus, é isso! É tão simples, como não o compreendemos? É sabido que as coisas simples são as mais difíceis de compreender. "Fez-se luz" - comentámos a rir. Também nós abrimos os olhos.
No entanto, no que concerne à Caverna, continuava eu de olhos fechados e, infelizmente, não há nenhum filme a respeito a sair e não conheço ninguém que tenha lido o livro. De modo que até ontem a luz não se tinha feito.
Fui fazer um trabalho ao Fisermen's Wharf e, antes de me vir embora, resolvi dar uma voltinha apenas para tirar umas fotos e não me perder, como tinha acontecido, da próxima vez que ali voltasse. Confesso que de todos os casinos em que entrei aquele é o que considero mais bonito. Tem reproduções de todos os recantos do mundo, de modo que num instante podemos estar na Cidade Proibida e, no seguinte, nas ruínas gregras. Num momento estamos em África e, no outro, em Portugal. E depois é o rio, o cenário sobre o Porto Exterior, que de certa forma me encantou.
Uma coisa que não tem nada a ver com isto e, ao mesmo tempo, tem tudo. O meu pai trabalha na construção civil e é hábito que onde quer que vamos, a um centro comercial ou visitar amigos, ele tem sempre o costume de se colocar a observar a construção do edifício, os materiais, etc. Eu e a minha irmã a ver a lojas e ele a bater nas paredes para ver se o material é bom. Aquele costume ora me diverte ora me irrita, consoante a disposição e o local, mas é curioso que, em Macau, já várias vezes me surpreendi a fazer o mesmo.
No outro dia ouvi um seminário em que o orador comentava, pesaroso, que o design chinês tem sido consecutivamente suprimido pela globalização. A sua ideia consistia em preservar as linhas culturais, de modo que a China pudesse manter um cariz próprio, um rosto seu que não seja eternamente datado àos velhos templos e aos monumentos nacionais. Dizia também que é uma luta constante com as empresas de cnstrução para que usem materiais mais sólidos, de melhor qualidade. É uma das características da terra, tudo muito prático, barato e rápido.
Já tinha notado no Venetian que o local, para um sítio recente, já tem vários buracos de velhice em muitos cantos. Passeando pela "Doca dos Pescadores", apercebi-me do mesmo. O que me levou a pensar: tanto luxo, tanta ostentação e, no fundo, tudo não passa de ilusão. Está tudo a cair aos bocados.
Acho que me deu uma epifania. Recordei-me de quando, no centro, o cenário final da Caverna, descobrem um par de esqueletos a olharem para uma parede e alguém comenta: somos nós! De repente, muitos dos momentos de mais ostentasão que me passaram pela frente se conjugaram na realidade e vi-me, também a mim, a olhar para uma sombra numa parede. Estes locais por onde passeamos e que nos atraem para os prazeres materiais da terra não fogem muito àquele centro desenhado por Saramago. Eu estava na Caverna, ainda que não me tivesse apercebido disso.
Talvez por na altura ainda ser muito nova muitos dos momentos do livro me escaparam. E, mesmo hoje, não posso dizer que o tenha percebido na totalidade. Julgo, no entanto, ter desvendado algumas das dúvidas que sempre me perseguiram. E a caverna encontrei-a aqui, bem longe de casa, mas tão perto do mundo.
Sem comentários:
Enviar um comentário