quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Os contos da Madrugada - sol sombrio


Ali não existiam flores. Nem mata, nem arvoredo. Apenas o gosto cinzento e frio do aço e do cimento, grandes arranha-céus de babel sacrilégio. Ali não aprendera a ser feliz, nem descobrira como amar o insignificantes, os pequenos tesouros sem máculo do dia a dia. Por isso partira. Partira na esperança de que nas terras de Clementina os ventos mudassem e lhe oferecessem a alegria perdida em anos e anos de solidão vazia de sol, vazia de si mesma. As histórias de fantasmas não a assustavam, nem tão pouco impediam de sonhar coma sua possibilidade, a sua crença.
A amiga contara: em certas noites, de lua semi-iluminada, estranhos eventos despuletam a crueldade da terra. Ninguém acredita, todos os temem. A fonte costuma guardar esses segredos perdidos na eternidade. Tudo o resto se transforma em lenda, mito que afugenta a criançada, a bonança e a misericórdia.
Clementina contara...e não voltara...
Aos poucos, o estranho sonho de procurar a mata das histórias sem nexo ou solução haviam-lhe despertado o desejo da mudança e a procura por um sol mais sombrio, mas menos punitivo. Uma terra de velhas e janelas indiscretas, com vidas que se multiplicavam consoante as vozes que sussurravam em ladainha benedita. Porquê temê-lo? Talvez se a felicidade existisse ali, nessa conversa que a inveja despuletava e a diferença tornava bravia. Por muito que viesse a sofrer, a desgraça não lhe traria muito mais a solidão urbana, opaca e repleta da ambundância saciada. Era tempo de mudança.

Naquela tarde, pegou na mala de viagem esquecida debaixo da cam desdo os tempos da universidade, pegou no gato adormecido na alcofa de penas, recolheu os seis ou sete livros ainda por ler e partiu. No trabalho uma carta de despedida, sem aviso ou notificação. Dos amigos um telefone sempre silencioso, vozes que esperaria nunca mais ouvir. Com outros sorrisos, as fotogafias recolhidas num álbum de poucas páginas. Apenas o essencial. Apenas o fundamental.
A viagem seria longa e, tão cedo, não traria regresso. Quem sabe? Talvez ela mesma se afundasse naquela madrugada misteriosa que inspirava tantos receios, tantas lendas de rancor. Também tinha os seus mistérios. Aquela atitude era um deles. Quem sabe se a tal fonte não a sugaria também, não transformaria a sua imagem, a sua delinquência, numa lenda perdida entre a crença popular. Assim, pelo menos, viveria.

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