quarta-feira, 18 de junho de 2008

Contos da Madrugada - Regressos

Um dia, sem aviso, resolveu voltar de terras novas à areia vermelha, mastigada, de quantas lendas o mundo tem. Sozinho, de malas às costas, correu pérolas e mares bravios até regressar, meio tonto, meio velho, ao destino proposto. Tudo estava diferente! A velha padaria era agora um campo de mato e erva daninha, onde nem a garotada tinha coragem de penetrar. Gaspar Sousa, o presidente, morrera de fígado, a maldita doença que o consumiu sem ele se queixar, que lhe rasgava a alma e corrompia o coração, mas à qual ele negava quase sempre o seu entendimento. A velha que todos os dias acorria à fonte desaparecera. Onde estaria Clementina? A gazela maltratada, paixão da sua juventude, crente de que a idade adulta lhe traria a liberdade que tanto almejava. Partira? Morrera? Ainda sonhava? Queria voltar a conhecê-la, talvez mesmo a amá-la. Mas a ideia ficaria para outra altura.
- Desapareceu. - alguém sussurrou quase a medo, por debaixo do alpendre negro da igreja - Dizem que foi na noite do crescente, junto à fonte.
- Junto à fonte? Qual fonte?
- Não conhece? - a surpresa surpreendia o medo e a tristeza a denúncia. Clementina fora um exemplo, que ninguém ousava contestar - Foi castigo, só pode! Aquela garota despreocupada, inconsequente! Vivia com a certeza de que nada a afectava, ora aí está uma maldição jeitosa. Desapareceu na fonte, durante a madrugada. A mãe anda chorosa, o pai morreu. Garotas como aquelas nem o diabo deseja...
Mas não se dizia - pelo menos eram essas as histórias das velhas - que era ele quem as procurava? Clementina era bela, bonita demais para terra tão vadia! Como não compreender os desejos do cornudo, ainda que fossem mal acolhidos pelos campónios? Era inveja, só podia!
Desiludido, palmilhou quilómetros de solidão exasperada, talvez sonhando, talvez acreditando, que o seu anjo pecaminoso lhe tornaria as braços, lhe revelaria estranhos enredos, estranhas paixões. Ele - só ele - que construíra naqueles anos o reencontro mais apaixonado desde o findar do último século. Todo o cenário estaria montado! A luz da tarde incidindo sobre a pele morena de Clementina, aquele vestido verde carmim que ela usava em adolescente na primavera, os seus olhos de fera bem abertos, certos dos momentos de idolatria que lhe haviam sido prestados naquela ausência. O ar pesado e quente de um entardecer de verão, a rua vazia, desnuda dos animais de feira e do cheiro a esterco destinado às plantações, as janelas de torno branco e cortinas semi erguidas, véus de mulatas ansiosas pelo prenúncio de uma tempestade humana. O assobio dos pássaros da época em sinfonia beethoveniana, tão completa, tão estrondosa, que faria o chão tremer mal dois olhares de saudade se cruzassem.
Ali estava ela, a fonte. Quase seca, a corrente tinha parado nos últimos tempos. Desde que desaparecera Clementina. Sentou-se no seu rebordo, passou pelas mãos a pouca água que ainda retinha o lodo no fundo. Gélida, como a rocha de onde provinha. Ele e ela costumavam correr para aquelas bandas, em miúdos, desejosos de encontrarem histórias do outro mundo que pudessem relatar à garotada. Nunca tal tinham descoberto, mas as aventuras tinham o mesmo sabor a pecado, ao interdito, e as descrições de encontros alternativos extasiavam os mais novos, aqueles que se reuniam para os ouvir. Sentia falta daqueles tempos, dos dias que não acabavam, das tardes que duravam para sempre. Dos minutos e das horas que se prolongavam por muitos dias. Do tempo passado.
Lamurioso, inclinou-se sobre a bica para beber um pouco daquela água já escassa. O seu coração parou, sentiu a respiração cortar-se no mesmo instante. Era ela! Clementina estava ali! O rosto dela, nítido, belo, eterno, preso na água translúcida da fonte. E chamava por ele...

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