domingo, 29 de abril de 2007

Cartas a um desconhecido IV - Princípios


Há uns tempos recebi esta carta. Gostaria que a lesses...


Não sei do que falas nem do que entendes, mas a ti te escrevo por me encontrar mais perto da tua pessoa que de qualquer outra que me rodeia e procura entender-me. Tenho 16 anos. Terei eu dito tudo nestas meras palavras? Em tempos julguei que teria todas as respostas se chegasse à bela idade de dezasseis anos… Hoje sei que não! As respostas não chegam, multiplicam-se as perguntas. O que faço aqui, qual é o meu futuro, como devo agir perante mim e perante os outros? Chamam-se criança mas exigem de mim crenças e respostas de um adulto que ainda não posso ser. Até onde, também me pergunto, vai a hipocrisia deste mundo que me relega para um plano do qual não passo de personagem secundária? Porque me renegam se quero estar na frente da batalha, prestes e disposto a ser morto pela primeira seta que o arqueiro lançar à descoberta da carne humana? Quero entrar na guerra, quero fazer mais…
Por certo julga-me louco. Ou talvez não… Devia antes de mais explicar-lhes as razões que me trazem a escrever-lhe uma carta que pouco mais tem que uma dúzia de lamentações que, provavelmente, vai considerar depravações, doenças da idade do armário. Se me conhecesse, se me olhasse nos olhos como sei que olha todas as pessoas que conhece, saberia no entanto que não sou pessoa de me esconder. Sou pessoa de agir, de ter ideias e ideais. Sou alguém que gosta de gritar aos sete ventos que é capaz de muito, muito mais, e melhor do que até hoje se fez. Agora, por certo, considera-me arrogante. Não o sou, no entanto. Sou até bastante humilde nos meus actos e pensamentos. Acontece que, consigo, sinto que posso abrir-me e confessar todas as tristes sinas que me pairam na alma.
Como começar? Talvez pelo nome: chamo-me Pedro. Poderia dizer-lhe o meu nome completo, o liceu onde estudo ou o nome dos meus pais, porém prefiro que me conheça simplesmente por este nome: Pedro. Os nomes completos exigem muito das pessoas. Dão-lhes – ou retiram-lhes – estatuto, configuram uma imagem do seu meio, da sua origem, do seu poder económico. Garanto-lhe que teria uma ideia diferente de mim se me apresentasse por Carlos Lopes Ferreira de Andrade e Couto em vez de João da Silva. Para evitar ideias preconcebidas chamar-me-ei apenas Pedro, com todas as consequências que um nome próprio acarreta. Estou disposto a aceitá-las se me aceitar a mim assim!
Onde ia? Chamo-me Pedro, tenho 16 anos. Já deve ter feito as contas e imaginar que estou no décimo primeiro ano. Não se engana, estou mesmo. Não sou um aluno excelente, mas lá tenho conseguido passar sempre sem reprovar. A minha mãe diz que ainda virei a ser doutor. Sonha que eu me torne médico e possa curar-lhe todas as dores de hipocondríaca. Se ele olhasse com mais atenção as minhas notas já teria tirado daí o sentido há muito tempo. Mas, o que se pode fazer? Temos que aturar os pais e alimentar-lhes os sonhos enquanto somos obrigados a viver sobre o seu tecto. Não somos livres enquanto crianças, adolescentes, jovens. Não possuímos liberdade em casa nem na escola. Somos apenas seres humanos em miniatura que sonham em poder trazer algumas diferença ao mundo ou passar por ele sem sermos notados. Por isso amarram-nos os pés e os braços, apertam-nos o pescoço e dizem-nos – repetindo-o constantemente – que temos que estudar para ser alguém. Ainda que nos empreguemos como carregadores do lixo.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Cartas a um desconhecido III


Poder ouvir-te, bem baixinho, nos meus ouvidos, escutar como a tua voz sussurada me acalma e me acalenta determinado tipo de esperanças, determinado tipo de ilusões... Hoje estou só. Estive só toda a minhvistoa vida sem o saber... Mas vivia sempre rodeada de pessoas, seres humanos que me sorriam e diziam o quanto gostavam de mim e me apreciavam, estimavam o meu trabalho e a minha presença. É como estar toda a vida em frente a um quadro que se adora pela singeleza dos traços, pela beleza das cores, pela significação das personagens, pelo calor e emoções que transmite e, de um momento para o outro, apreceber-se que tudo aquilo é uma cena de morte, das piores que poderias ter na vida.

Escuto, mais uma vez, alguém que se aproxima. És tu? Quantos períodos terá que possuir esta carta para que tenhas coragem de abrir a porta e encontrares-me aqui, à tua espera, ansiosa por que me ouças frente a frente, ansiosa para que me expliques a tua ausência, a tua/ minha dor e frustração. Noutros tempos tive tantas certezas que me julguei dona do mundo. Cometi injustiças, arbitrariedades, falsos juízos e omissões. Quando me apercebi ... como dizer? Procurei mudar o esquema. Ter outras atitudes, ter outros amigos, olhar em vez de falar, observar em vez de agir. O que sucedeu? O mesmo.´

De cada vez que tomava uma iniciativa descobria que ela de nada valia, pois os seus resultados finais eram invariavelmente os mesmos. Alguém me dizia que não podia agradar a todos, que eu nunca conseguiria fazer feliz toda a gente sem me prejudicar a mim primeiro. Eu nunca quis acreditar em tais desígnios! Como acreditar se o sonho em que vivemos é muito mais belo, muito mais emocionante que qualquer realidade? Mesmo aquelas que estão mesmo em nossa frente...

Só a mim me dou vontade de chorar. Quem lê estas linhas certamente se ri destas minhas dissertações sobre coisas que mais ninguém compreende. E este comentário também te diz respeito. Também, por certo, te ris com gosto deste meu lamentar tão patético como as cartas de amor patéticas de Álvaro de Campos. Mas nem por isso deixam de ser verdadeiras. Eu estou aqui! Tu estás aí! Tu, só, com medo de entrar; eu, só, por ter querido ficar...

Lembro-me daquela viagem que fiz, ainda criança, a uma país cujo nome não me recordo. Lembro-me da minha felicidade, do meu orgulho, da minha excitação. Lembro-me do olhar da minha mãe ao mostrar-me coisas novas - coisas que nem ela própria conhecia - coisas das quais nunca mais esqueci. O verde de um relvado num parque infantil, o sabor do chocolate de eu marca estranha, a doçura de um sol que ficou naquela idade, naquele instante e naquele momento em que eu me deletei na relva a observá-lo...

quarta-feira, 4 de abril de 2007

De cor


Nas tuas mãos

Sei de cor todos os teus passos, todas as tuas súplicas, todas as tuas angústias. Sei-as de cor assim com sei os meus traços, a minha volúpia, a minha tristeza quase inata e a minha postura de perdedor. Existem certas coisas que sempre ansiei por dizer-te mas cuja coragem me faltou nos momentos oportunos. Receio… talvez! Vivemos num mundo em que o receio se tornou na arma dos mais fortes e a coragem a dos mais fracos. Eu sou fraco e tenho receio. De nada valho.
Lembro-me pois de uma manhã de Primavera em que resolvi anunciar-te a minha decisão de te deixar, de deixar este lugar e partir sem rumo para uma outra terra, para um outro sonho, para uma outra vida. Lembro-me de te ter dito que nada do que vivia na altura possuía ainda o significado que lhe atribuíra aquando a escolha e que, portanto, já não tinha sentido continuar a vivê-la. Sempre fui um fraco… Mais uma vez demonstrava a minha fraqueza! Por isso nessa manhã peguei na mala que tinha comprado na minha viagem a Londres, peguei no conjunto de camisas que tinhas passado na noite anterior, peguei no canário que me ofereceras três dias antes, nos meus anos, passei duas horas a rondar no quarto e, por fim, fui-me embora. E nunca mais voltei.
Sei que me odiaste todos os dias do resto da tua vida. Sei que me amaldiçoaste com todas as pragas que encontraste e que a tua tia – bruxa, mística, ou lá como lhe chamavam! – te ensinara ainda tu não sabias soletrar o teu nome. Sei que cortaste todas as fotografias em que nos vias juntos e alegres, talvez mesmo aquelas que tínhamos tirado em Londres, e que as queimaste em gasolina no pátio da nossa antiga casa. Sei que te arrependeste da noite no parque quando finalmente disseste que sim aos meus pedidos e juraste matar-me quando me visses novamente. Eu, simplesmente, fugi de ti, da tua obsessão, do teu sofrimento, do teu desespero. Peguei na guitarra, minha única amiga, e parti sem rumo, como sempre ansiara fazer, até onde o horizonte me quis levar. Sem porto de retorno, sem abrigo, sem assento, planta sem raiz na aragem.
Quando por fim me perdoaste escreveste-me uma carta. Nada de muito lamechas – apenas o essencial! Que tínhamos uma filha, que ela ia casar e que queria que o pai a levasse ao altar. Respondi que não era religioso. Chamaste-me idiota. E assim, mais uma vez, não voltei. Deixei-me ficar na minha vida ainda com pouco sentido e permaneci um fraco na minha própria amargura. Escreveste-me novamente para anunciar que ia ser avô e que aquela era a última carta que te dignavas a enviar-me. Tinhas voltado ao velho ódio, às velhas ideias de vingança, ao velho rancor. Ainda se ao menos eu tivesse deixado o canário…
Mas sabias-me de cor! Sabias que eu não voltaria por mais ódio que me votasses, por mais tempo que passasse, por mais cartas que me enviasses pedindo tréguas. Conhecias-me de cor e como de cor se conhece a vida sabias que ela não deixaria que eu voltasse. Amargos tempos! Eu jurei que talvez… Talvez um dia. Era pessoa de «talvez», nunca de confirmações. Foi assim que nos conhecemos, foi assim que vivemos e foi assim que jurámos morrer. Nunca um sim ou um não, apenas um talvez…
Agora que morreste e deixaste a terra que te acolheu por sessenta anos eu digo que te sabia de cor e que sempre fui um fraco. Para quê afirmá-lo se já o sabias? Para quê admiti-lo se já mo tinhas dito? Não sei… Nunca soube de nada. Só te sabia de cor.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Hora de Ponta - Reportagem de Ambiente



A CABRA. Não falo da torre da velha universidade que, em outros tempos mais prósperos, chamava os estudantes para as aulas. Não falo, tão pouco, dessa mesma velha universidade que perdeu, em muitos cantos, a elegância e o charme da antiguidade para dar lugar à degradação. Não! Falo de um espaço dessa famosa Associação Académica de Coimbra, num segundo andar, mesmo ao lado da direcção geral, composto por duas salas que, em dias de maior movimento, quase não consegue albergar toda a criatividade dos seus ocupantes. Chão escuro e poeirento, os caixotes de lixo a transbordar, velhos computadores inúteis a ocupar espaço precioso, portáteis espalhados por todos os lados, móveis poeirentos repletos de pastas, armários de metal que não abrem, aquecedores que não funcionam.
É dia de entrega de artigos. Deadline. Toda a gente fala, toda a gente se enerva, aquele já grita. Quem diz que o espectáculo é no palco? Nada melhor que os bastidores! Dá vontade de parar, nem que se esteja no meio de uma ideia fenomenal, e observar os que circulam. Juventude… Sabe ainda melhor a quem pode vivê-la.
O telefone toca – é um fax. Lá vai aquele que ainda não conseguiu falar com nenhuma fonte. Parece desiludido, cansado. Amaldiçoa o momento em que teve a brilhante ideia de ficar com aquele artigo. Está, mais uma vez, a olhar para o telefone e a digitar os números. Como o outro aparelho está a receber o fax tem de usar o do segundo compartimento, mais pequeno, mais estreito, mais silencioso. Se conseguir falar com o maldito ministro vai ter assistência. Aquilo não lhe agrada. É novo, não tem muita experiência. Já ouviu os colegas a conversaram. Parecem trabalhar naquele meio, no jornal universitário de Coimbra, há anos. Parecem conhecer já tudo, ter falado com toda a gente. Encolhe-se, fala baixo e depressa. Consigo sentir-lhe o medo. Tomara que o ministro seja daqueles que gosta de falar…
Chove. Há um cheiro a pó no ar, a humidade entranhada. Os que fumam saem da secção e instalam-se no corredor. Não adianta, o cheiro espalha-se na mesma. Há gente que se ressente, não apreciam o tabaco. Outros estão descontraídos, na conversa. Muitos trabalham. Os artigos têm que ser entregues. São quatro horas da tarde, hora de ponta. Há copos de cerveja vazios esquecidos numa borda e que não parecem incomodar ninguém. Um sofá, com um grande buraco no meio por onde se vêem as molas, parece fazer as vezes das cadeiras inexistentes. Acaba de chegar mais uma promessa jornalística. Vê quem procura, vai cumprimentá-la. Mas, agora, onde é que se vai sentar?
O sofá estragado já foi ocupado. Um dorminhoco recupera o sono de uma noite perdida nas tascas da cidade. Muito barulho. O stress acumula-se. Tac tac, primem-se as teclas dos computadores. A Internet não funciona outra vez. Os editores exasperam. Onde é que está o artigo que aquele rapaz tinha prometido? Onde é que está o rapaz para começar? Preciso de mais um cigarro para acalmar.
Os dois telefones estão ocupados outra vez. Alguém grava uma conversa por detrás daquele móvel. Chiu! Pouco barulho! Ninguém liga.
- Quantos caracteres eram mesmo?
- 3500. Quantos tens?
- Bem…4000…
- Tens que cortar.
- Mas isto é mesmo importante, não dá para ficar?
- Tenta cortar alguns e já se vê.
Já se transpira. Onde está o editor? Aquele quer ir para casa, é sexta-feira! Quero o gravador! Estão todos a ser usados. Viram o jogo ontem à noite? Não, estive aqui a acabar o artigo. Tenho 3800 caracteres, pode ficar assim? Corta mais um bocado que agora vais ter superlead. Onde meteram o macaco? Qual macaco? O peluche com a capa preta. Roubaram-nos o macaco malta! Alguém viu um Diário de Coimbra? De que dia? Alguém viu o Público de hoje? Tenho aqui a capa mas não sei do resto. Não consigo falar com o ministro, não tens outro contacto? Começa a escrever o artigo e já se vê.
Penso se, em outros locais, as coisas também se passarão assim. A mesma energia, a mesma excitação, o mesmo reboliço. Uma juventude de que sei vir a sentir falta um dia. Um empolgamento que me faz sentir viva e útil ao mesmo tempo. Todos parecem sonhar com o amanhã. Terá ele as mesmas cores, o mesmo cheiro e a mesma alegria? Só o futuro o dirá.

Cartas a um desconhecido - II

Não percebo porque ainda me escondo daquele que me procuram. Cheguei a ansiar essa procura, esse desejo, cheguei a implorar que me olhassem e me dissessem que me reconheciam no meio da multidão opaca e sem rosto. Nessas alturas costumava olhar em frente e sentir uma vitalidade que envergonhou muitos dos que se consideravam superiores a mim. Pois claro! Conseguia fazer-lhes frente, olhá-los sem medo e gritar, gritar bem alto, Consegui! Estou aqui! Enfrentei-vos! Como não me sentir realizada? A vida corria-me bem.
Depois, aconteceu... Não sei bem como ou porquê, não sei se foi a minha arrogância, a minha cegueira, ou a própria ambição de ir mais além. De repente estava só e não me preocupava com isso. Estava sozinha no desejo de o estar e não querer mais ninguém ao meu lado para além daqueles que eu determinava. Que não eram muitos, diga-se. O meu gato, independente, o meu cão, fiel, e o meu piriquito, que morreu na gaiola ao fim de dois meses. Não chorei nem lhe fiz um enterro. Julgo que o gato o comeu nos dias em que me esqueci de lhe dar de comer. Enfim... Contrariedades da vida. Naqueles dias eu própria queria servir de alimento ao meu gato.