quarta-feira, 4 de abril de 2007

De cor


Nas tuas mãos

Sei de cor todos os teus passos, todas as tuas súplicas, todas as tuas angústias. Sei-as de cor assim com sei os meus traços, a minha volúpia, a minha tristeza quase inata e a minha postura de perdedor. Existem certas coisas que sempre ansiei por dizer-te mas cuja coragem me faltou nos momentos oportunos. Receio… talvez! Vivemos num mundo em que o receio se tornou na arma dos mais fortes e a coragem a dos mais fracos. Eu sou fraco e tenho receio. De nada valho.
Lembro-me pois de uma manhã de Primavera em que resolvi anunciar-te a minha decisão de te deixar, de deixar este lugar e partir sem rumo para uma outra terra, para um outro sonho, para uma outra vida. Lembro-me de te ter dito que nada do que vivia na altura possuía ainda o significado que lhe atribuíra aquando a escolha e que, portanto, já não tinha sentido continuar a vivê-la. Sempre fui um fraco… Mais uma vez demonstrava a minha fraqueza! Por isso nessa manhã peguei na mala que tinha comprado na minha viagem a Londres, peguei no conjunto de camisas que tinhas passado na noite anterior, peguei no canário que me ofereceras três dias antes, nos meus anos, passei duas horas a rondar no quarto e, por fim, fui-me embora. E nunca mais voltei.
Sei que me odiaste todos os dias do resto da tua vida. Sei que me amaldiçoaste com todas as pragas que encontraste e que a tua tia – bruxa, mística, ou lá como lhe chamavam! – te ensinara ainda tu não sabias soletrar o teu nome. Sei que cortaste todas as fotografias em que nos vias juntos e alegres, talvez mesmo aquelas que tínhamos tirado em Londres, e que as queimaste em gasolina no pátio da nossa antiga casa. Sei que te arrependeste da noite no parque quando finalmente disseste que sim aos meus pedidos e juraste matar-me quando me visses novamente. Eu, simplesmente, fugi de ti, da tua obsessão, do teu sofrimento, do teu desespero. Peguei na guitarra, minha única amiga, e parti sem rumo, como sempre ansiara fazer, até onde o horizonte me quis levar. Sem porto de retorno, sem abrigo, sem assento, planta sem raiz na aragem.
Quando por fim me perdoaste escreveste-me uma carta. Nada de muito lamechas – apenas o essencial! Que tínhamos uma filha, que ela ia casar e que queria que o pai a levasse ao altar. Respondi que não era religioso. Chamaste-me idiota. E assim, mais uma vez, não voltei. Deixei-me ficar na minha vida ainda com pouco sentido e permaneci um fraco na minha própria amargura. Escreveste-me novamente para anunciar que ia ser avô e que aquela era a última carta que te dignavas a enviar-me. Tinhas voltado ao velho ódio, às velhas ideias de vingança, ao velho rancor. Ainda se ao menos eu tivesse deixado o canário…
Mas sabias-me de cor! Sabias que eu não voltaria por mais ódio que me votasses, por mais tempo que passasse, por mais cartas que me enviasses pedindo tréguas. Conhecias-me de cor e como de cor se conhece a vida sabias que ela não deixaria que eu voltasse. Amargos tempos! Eu jurei que talvez… Talvez um dia. Era pessoa de «talvez», nunca de confirmações. Foi assim que nos conhecemos, foi assim que vivemos e foi assim que jurámos morrer. Nunca um sim ou um não, apenas um talvez…
Agora que morreste e deixaste a terra que te acolheu por sessenta anos eu digo que te sabia de cor e que sempre fui um fraco. Para quê afirmá-lo se já o sabias? Para quê admiti-lo se já mo tinhas dito? Não sei… Nunca soube de nada. Só te sabia de cor.

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