Dá-me um certo gosto, no entanto, ler primeiro as obras e apenas depois avaliar o mesmo enredo num filme. Sobretudo quando se tratam dos chamados clássicos da literatura mundial, uma vez que dadas as exigências actuais do espectador, a transposição para a película dá sempre azos a alguma romantização da narrativa por parte dos guionistas. O público, em muitos casos, até agradece, colmatando assim um ou outro defeito encontrado na obra da sua predilecção. E se há aqueles realizadores que seguem quase ipsis verbis as cenas, diálogos e o tempo cronológico dispostos nos livros, outros existem que não se inibem de trabalhar um pouco a imaginação, reescrevendo cenas e histórias, de modo a que fiquem mais ao gosto do público contemporâneo ou mais propensas a mostrar a potencialidade da sétima arte no seu melhor.
Ler os livros e ver os filmes é, sem dúvida, uma experiência que, se nos dermos a esse trabalho, ainda dá que pensar. Há um certo temor, julgo, em modificar muito o enredo dos grandes clássicos, tal a sua preponderância no espaço que ocupam na literatura mundial. Filmes como O Retrato de uma Senhora ou Anna Karenina são quase cópias exactas dos livros de que serviram de inspiração, uma vez que, sendo o resultado de uma interpretação já definida, é difícil para o realizador mostrar a sua criatividade. Em certos casos, no entanto, em grande parte quando são jovens com pouca experiência, mas com vontade de se afirmar ao colocar as mãos nesse material, vão saindo umas ideias um tanto ou quanto originais, reescrevendo, em certo modo, a história, uns mais que outros, sem nunca a atraiçoar. Pessoalmente, considero que foi esse o caso do último Orgulho e Preconceito. De outros livros, menos clássicos mas de autores também consagrados, poderíamos falar ainda de Expiação, Senhor dos Anéis, O Ensaio sobre a Cegueira, Chocolate e muitos, muitos outros, mas só para referir os mais recentes.
Grandes clássicos ou não, há também aquela tendência para contemporizar as obras datadas, romantizando-as, quase sempre, ou procurando introduzir a moral que defendem nos novos tempos. No momento, lembro-me do último Grandes Esperanças, poderia falar ainda de um filme coreano que adaptou a obra Daddy Long-legs, e outros, cuja imaginação agora me falta.
Toda esta argumentação para falar de um sem número de ideias que me passaram pela mente ao acabar de ler O Véu Pintado, obra que finalmente descobri num canto recôndito de um supermercado, depois de há muito ter visto o filme. Confesso que esperava ver a história do filme suceder-se enquanto lia (embora a tradução portuguesa que tenha encontrado deixe muito a desejar), o que foi acontecendo até chegar sensivelmente a metade da obra. A partir daí foi um reler completo dos acontecimentos e tomar contacto com uma narrativa que me era desconhecida.
Findo o livro - que aconselho vivamente - ao matutar nas duas obras, deparei-me com uma conclusão curiosa. A mesma premissa, as mesmas personagens, os mesmos acontecimentos e, em muitos casos, até os mesmos diálogos, a mesma moral e….um desenvolvimento completamente diferente, só para não dizer totalmente oposto!!! Na película de Naomi Wats e Edward Norton, a ida para a cidade chinesa infestada de cólera e o contacto com as freiras do convento francês, desempenharam em Kitty o mesmo tipo de transformação e uma vontade similar de se tornar alguém melhor que estão expressas na obra, apercebendo-se então da sua frivolidade e de como se deixara iludir tão facilmente num caso e numa paixão sem futuro. No entanto, no filme essa transformação aproxima-a do marido, no qual começa a notar as virtudes, conduzindo-os a um perdão e a uma reconciliação que no livro pouco mais ficam que implícitos. Incrível como até os diálogos resgatados da obra de Somerset Maugham adquirem sentidos completamente diferentes, sem nunca deixarem de significar exactamente o mesmo! As personagens são em tudo bastante similares, as actuações muito fiéis, mas o desenvolvimento da história é o exacto contrário.
À medida que me encaminhava para o fim da obra, não podia deixar de sorrir com uma estranha sensação. Foi como se o guionista do filme de 2006 tivesse adorado a história, todas as ideias que continha e a moral que defende, mas preferisse que a protagonista chegasse às mesmas conclusões de outro modo. Por tal, livro e filme são em tudo idênticos e em tudo divergentes, duas obras distantes que não deixam de obedecer ao mesmo tema, que, no fundo, dá nome ao título.
E é por estas pequenas coisas que vale sempre a pena ler os livros, ainda que os filmes já nos tenham retirado o entusiasmo pela história. Mesmo que ambas as obras se repitam em quase tudo, há sempre lugar para novos olhares e novas interpretações que mostram como a criatividade humana é, sem dúvida, fabulosa. Talvez mesmo ela esse tal véu pintado que é a vida…
1 comentário:
Olá Cláudia,
Bem, mas que excelente artigo, os meus parabéns. A posição previlegiada será certamente a terceira. Mas para quem ou já viu o filme ou já leu o livro há que desarmar-se o mais possível de expectativas e de perceber que literatura e cinema têm linguagens distintas. O que não é seguramente fácil.
O maior prazer de todos, tenho-te a dizer, é mesmo ver o livro e ler o filme. Esse sim. Tão enriquecedor.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
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