Ela descia a rua em jeito francês. Uma perna em frente da outra, querendo mostrar às viúvas de quarenta que era bela e queria viver. O seu ídolo era a Marylin, deusa do cinema. Queria ser livre, queria ver o mundo. E talvez evoluir, conquistar-se a si mesma. Por isso vestia mini-saia, usava o cabelo curto, à moda, e olhava os homens de frente, sem medos. Os velhos chamavam-lhe galdéria, os jovens desejavam-na mas não a possuiam, os novos invejavam-na, era deusa no seu mundo de palácios e princesas.
Descia pela calçada mal cuidada, já quase esbatida em terra, no elegante caminhar de uma gazela. O cabelo castanho bem claro, com reflexos dourados, os olhos verdes esmeralda a puxar os de uma gata vadia. Vestia bem, ainda que barato. As roupas fazia-as ela própria no costureiro da tia. Cores fortes, bainhas subidas, decotes generosos. Jeito dócil em poses de fogo. Ela parava as ruas quando decidia passar.
Dobrando a esquina da casa do padre Tártaro, costumava passar na fonte quando ia à mercearia. A comerciante, Dona Rosa, olhava-a de alto a baixo em desaprovação. Conhecia-a desde pequena, mas não comentava. Os jovens daquele tempo eram estranhos! Ninguém sabia bem em que pensavam. Muito menos Clementina, filha da divorciada, rapariga de crenças e sonhos duvidosos. Filho do pai soldado, que morrera na guerra dos negros, deixando filhos mulatos que nunca ninguém chegaria a reconhecer. Trabalhadora na cidade, numa fábrica de conservas, com visitas e passeios duvidosos aos bares da alta roda.
Assim era Clementina!
Detestava a aldeia pequena e sem perspectivas, a sua gente macambúzia e de mentes tacanhas, olhares de denúncia e ouvidos de águia de rapina. Mas gostava da fonte! Fonte dos segredos, fonte das lendas, dos contos da madrugada. Histórias de velhas e de bruxas em que ninguém queria acreditar, mas temia. Fantasmas e horrores de tempos não muito remotos, extraordinariamente presentes. Narrativas que a deliciavam e entretinham, porque imaginava sempre viajar com elas.
Por isso, naquela noite de são joão, depois de um serão de festa noutras paragens mais ilunimadas, decidiu passar pela fonte antes de regressar a casa. Não era lua cheia - talvez quarto crescente! Uma luminosidade branda acompanhava as sombras da terra. Na rua nada se via, tudo se transformava. Os animais em homens, as brumas em fantasmas, a natureza do campo em terra selvagem. Ela não se importava! Não queria estragar uma noite bem passada com temores de outros tempos. Correu à fonte, como corriam as crianças, talvez em busca das velhas histórias que lhe entusiasmavam a alma. Viajar um pouco às terras do nada, a tempos que já não existiam...
Virando a esquina, ela ali estava! Sozinha e desprezada, quase sem água corrente, aguardando por um despertar que a Câmara não tinha grande empanho em prestar-lhe. Coberta de musgo e erva trepadeira, daria um cenário quase idílico, uma aura quase fantástica. Porquê temer estes lugares quando eles também podem trazer os seus restos de felicidade? Memórias que não são acrescentadas à crendice por irromperem com dúvidas as certezas da populaça. Como detestava aquela gente! Que ódio, que desprezo! Que estranha forma de vida, de crer na realidade! Por mais anos que vivesse, por mais segredos que descobrisse, nunca conseguiria entender mentalidade tão tardia. Porque nascera ela ali?
Foi-se aroximando sem medo, sentando-se à beirinha da água. Ao de leve, tocou na superfície. Sentiu-a fria, quase gelada, própria de uma nascente. Apeteceu-lhe beber um pouco, mas o receio levou-a a recuar. Os pivetes da aldeia tinham a mania - ou a coragem - de se colocarem em mirabolantes aventuras envolvendo, quase sempre, a fonte e a água que dela provinha. Por vezes rebentavam sacos de farinha ou frascos com as mais ignotas substâncias. Alguma precaução ser-lhe-ia útil. Mesmo assim, alheia a visitas que da penumbra se aproximavam, continuou molhando os dedos na água fresca e límpida, recordando cenas remotas de uma vida que já não parecia a dela.
Do dia em que o pai se despedira com um até logo breve. Da manhã em que descobrira que a janela não tinha ferrolho. Da tarde em que adormecera na casa do Zé Alfaiate. Da noite em que partira sem rumo pela calada, certa que jamais amanheceria novamente naquela terra. Tudo se concretizara, nenhuma das promessas então feitas se cumprira. Assim era, assim tinha sido sempre a vida de Clementina.
Os passos do desconhecido eram breves, quase inexistentes. Segundo a segundo, aproximavam-se sem estrondo daquela figura esbelta, maravilhosa, sozinha na fonte. Chamavam-lhe - à sombra - o velho, o homem das sombras. As viúvas comentavam que perseguia jovens moças para as trazer como escravas nos seus domínios. Desenhavam-no tosco, corcunda, mas ninguém sabia ao certo quem era: novo ou velho, homem ou mulher, humano ou bicho. Muitos ouviam as suas passadas, muitos lhe advinhavam os intentos em noites de pouca Lua. Mas ninguém conhecido jamais o vira, jamais o testemunhara. Apenas ouvira histórias de medos e angústias.
Clementina passou um pouco de água pelo pescoço. A noite aquecia. Parecia quase a temperatura do meio da tarde. De vestido de alça, negro como os seus cabelos, sentia-se rainha num mundo só seu. Ali, naquele lugar, naquela paisagem, não a podiam contestar, não lhe podiam negar a personalidade. Junto da fonte podia ser Clementina! Esquecia a vadia, a filha da separada, a boneca de trapos, a actriz de hollywood que perdera os palcos. A fonte dizia-lhe a verdade, confidenciava-lhe os seus segredos. Ela, Clementina, estava destinada a grandes voos. Um dia mostraria a todos o seu poder.
As nuvens cobriram a noite. Um grito abafou-se no escuro.
Clementina virou-se, assustada, e procurou descobrir a proveniência do som. À sua mente luzes de outras histórias, como aquela, nos contos da madrugada. Viúvas que sonhavam com os falecidos, crianças que se perdiam na busca de doces, animais sem cabeça, sem corpo, jovens perdidas para sempre dos olhares das famílias, dos noivos. Temeu por si!
Do dia em que o pai se despedira com um até logo breve. Da manhã em que descobrira que a janela não tinha ferrolho. Da tarde em que adormecera na casa do Zé Alfaiate. Da noite em que partira sem rumo pela calada, certa que jamais amanheceria novamente naquela terra. Tudo se concretizara, nenhuma das promessas então feitas se cumprira. Assim era, assim tinha sido sempre a vida de Clementina.
Os passos do desconhecido eram breves, quase inexistentes. Segundo a segundo, aproximavam-se sem estrondo daquela figura esbelta, maravilhosa, sozinha na fonte. Chamavam-lhe - à sombra - o velho, o homem das sombras. As viúvas comentavam que perseguia jovens moças para as trazer como escravas nos seus domínios. Desenhavam-no tosco, corcunda, mas ninguém sabia ao certo quem era: novo ou velho, homem ou mulher, humano ou bicho. Muitos ouviam as suas passadas, muitos lhe advinhavam os intentos em noites de pouca Lua. Mas ninguém conhecido jamais o vira, jamais o testemunhara. Apenas ouvira histórias de medos e angústias.
Clementina passou um pouco de água pelo pescoço. A noite aquecia. Parecia quase a temperatura do meio da tarde. De vestido de alça, negro como os seus cabelos, sentia-se rainha num mundo só seu. Ali, naquele lugar, naquela paisagem, não a podiam contestar, não lhe podiam negar a personalidade. Junto da fonte podia ser Clementina! Esquecia a vadia, a filha da separada, a boneca de trapos, a actriz de hollywood que perdera os palcos. A fonte dizia-lhe a verdade, confidenciava-lhe os seus segredos. Ela, Clementina, estava destinada a grandes voos. Um dia mostraria a todos o seu poder.
As nuvens cobriram a noite. Um grito abafou-se no escuro.
Clementina virou-se, assustada, e procurou descobrir a proveniência do som. À sua mente luzes de outras histórias, como aquela, nos contos da madrugada. Viúvas que sonhavam com os falecidos, crianças que se perdiam na busca de doces, animais sem cabeça, sem corpo, jovens perdidas para sempre dos olhares das famílias, dos noivos. Temeu por si!
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