terça-feira, 25 de novembro de 2008

Uma estranha forma de ser

Há pessoas que nos marcam, para o bem ou para o mal. Nem sempre o motivo que nos move a recordá-las é passional ou resulta de uma emoção reprimida, sendo, pelo contrário, diversas vezes catapultado por um momento do quotidiano, uma cena de um filme ou o parágrafo de um livro. Os que nos disseram, a forma como nos trataram, pequenas descrições de si próprios que não entendemos e se repercutem na memória pela falta inexorável de uma resposta satisfatória aos nossos porquês. Porque o disseram? Porque agiram assim? Porque razão eu não lhe soube responder?
No meu primeiro ano da faculdade tive uma professora um tanto ou quanto para o arrogante. Isto não é novidade nenhuma - quantos de nós não os poderão contar pelos dedos? - mas esta marcou-me de uma forma especial. Não foram as aulas, nem tão pouco a matéria, muito menos a nota, a qual nunca pensei sequer contestar. Era uma senhora dos seus quarenta anos, bastante jovial e dinâmica por sinal, mas haviam atitudes nela que não me agradavam e me despuletavam uma certa antipatia por aquela personalidade forte mas pouco crédula mediante convicções alheias.
Recentimentos à parte! Um dia perguntou-nos porque razão líamos bibliografias. Da minha parte, silêncio. Com excepção dos pequenos resumos bibliográficos nas bordas dos livros de história e português no secundário, esse é um género de literatura que nunca me despertou relativo interesse. A razão ainda hoje não sei descrevê-la com lógica, mas permanece-me a sensação que, com excepção dos grandes momentos da vida, que utilidade tem ler dissertações tendenciosas sobre determinada personagem? Talvez deva culpar a minha professora de português do 10º ano, cujo leccionamento da crónica de D.João I me deixou com muita má impressão deste tipo de narradores. Com rodeios ou sem eles, o facto é que não soube responder, limitando-me a ouvir os comentários dos meus colegas.
Foram vários, mas a resposta era mais ou menos a mesma: para compreender a obra! Assenti, concordando com a tese, mas com a ligeira impressão de que não era bem aquilo que a professora procurava. E não era de facto! Com um sorriso maroto e boa disposição lá desvendou, com alguma complacência, que, no seu entender as pessoas liam bibliografias para saberem as cusquices. Risota geral! Sim, tem lógica. Por muito que nos interessemos por certos momentos que nos ajudam a entender melhor um livro, conhecer o autor nada mais é que uma curiosidade voyer por o admirarmos ou detestarmos. Se nenhum dos anteriores casos se verifica, que interesse tem conhecer a fundo uma personagem?
Lembro-me que nos passou para as mãos um pequeno texto sobre a vida de Inês de Castro, tão melindrada e romantizada nesta cidade. Contudo, mesmo depois de toda aquela explicação e ideias preconcebidas do que é ou devia ter sido o amor de Pedro e Inês, a pergunta da professora não me saiu da cabeça e mesmo hoje, já com alguns anos passados, me continuo a recordar com frequência dela. Para o mal ou para o bem, ainda não encontrei a minha resposta.

Há uns quinze dias aproveitei um copão de 10euros nas livrarias Bertrand e comprei um livro que há muito me namorava os olhos. A obra, ou melhor, o conjunto de obras tratam-se dos contos completos de Truman Capote, o escritor norte-americano mais conhecido pelo seu best-seller A Sangue Frio e recentemente lançado à ribalta por um filme oscarizado, Capote, e outro que teve o azar de passar quase ao mesmo tempo nas salas de cinema, mas sem prémios, Infame.

Li A Sangue Frio no ano passado, leitura obrigatória numa cadeira de jornalismo escrito. O comentário julgo tê-lo publicado na altura, perdido algures neste blogue que, consoante os períodos, vai tendo maior ou menor actividade. Não me recordo com certezas do que achava da obra antes de a ler. Lembro-me que o filme motivara a sua publicação desenfreada e o destaque em várias livrarias, mas não fora a imposição do professor provavelmente nem lhe teria prestado muita atenção. De resto, a biblioteca cá de casa vai aumentando a um nível assustador, de tal forma que a menos que a curiosidade leve a melhor os gastos estão seriamente limitados.

A leitura começou desconfiada, mas, a pouco e pouco, ganhou alguma substância. No fim já me derramava em lágrimas pelas vidas daquelas quatro pessoas tão cobardemente assassinadas, num leitura completa, plena, estimulante, tão envolvente que me envergonhei de nunca ter prestado a atenção devida ao autor. Pouco tempo depois era lançado Travessia de Verão, um romance inacabado de Capote, que eu li com sincera nostalgia por me recordar um peça dramática com uma história semelhante estudada no meu 12ºano.

Tanto neste último romance, lançado postumamente, como nos Contos Completos descobri-me, quase que de forma inconsequente, a ler as notas introdutórias do editor. Descreviam, basicamente, a vida de Truman Capote, tudo o que fez para subir na vida e o fim trágico ao qual, inadvertidamente, se deixou levar. Sim, eram cusquices! Mas, em certa medida, abriram o pano aos contos que de seguida devorei com inestimável interesse, tão repletos de desejo contido como de alguma mágoa, visões do mundo muito jovens mas já resultado de certa perspicácia, a mácula social que distingue os grandes narradores.

Truman admira a maldade, o que de mais profundo e negro existe em cada um. Admira também o lado belo, requintado, muitas vezes ignorante mas prático da vida. A capa que apresenta o livro é sinónimo dessa dualidade. Capote é-nos apresentado jovem, com um olhar fugidio, desconfiado, sozinho . A fotografia não nos intimida. Capta o nosso olhar desnudo e inquieto, aquele que procura respostas às perguntas mais cabais, mas que surgem invariavelmente ocultas. Quem é ele, porque nos observa assim, porque nos parece julgar? Uma sensação que nos trespassa, nos abandona à nossa transparência tão brutal, tão insignificantemente humana. E, daquela mesma forma atraente, compreendemos os seus contos, impelimo-nos a querer desvendar aquelas personagens, meio adoráveis meio hediondas, que nos acompanham por linhas e linhas de inconfundível satisfação.

Por isso perguntar, até que ponto o conhecimento da maldade e da elegância humana nos diz de nós próprios? Costumo dizer que quem trai é quem desconfia, nunca aquele que foi traido. No mesmo sentido, quem conhece a fundo a emoção mais negra é quem é capaz de a sentir. Os que com incoência olham o mundo, procurando o bom e o saudável que nele existe, pouco sabem, pouco compreendem e pouco são capazes de sentir. Talvez por isso os grandes génios se suicidem sempre...

Para conhecer Capote, em muito mais que a sua obra.

Livro: Contos Completos

Autor: Truman Capote

Edição: Sextante Editora, setembro de 2008



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