quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A norte a chuva parou (d)

Uma revolução... Que lhe dizia uma revolução? Nada? Não podia dizer que não sentia nada pois nutria, simplesmentente, indiferença. Enquanto tornava a percorrer os corredores do escritório, já quase esquecida dos movimentos que por ali sussurravam, lembrou-se de uma das suas personagens mais antigas. O Norberto.

Norberto era merceeiro. Tinha mulher, dois filhos, uma amante, um filho bastardo, ia à igreja todas os domingos, pagava renda da casa e da mercearia, passava as manhãs na caixa, a hora do almoço a ver o jornal, parte da tarde no café do Pedro e fechava a loja pelas sete. Ao chegar a noite, à hora da ceia, estendia-se no sofá azul da sala e via o jogo de futebol, as últimas novidades do dia, e passava pelas brasas a ressonar. Não o importunavam os ruídos dos filhos a jogar no computador ou os comentários irritados da esposa à sua inércia. O cão dormia com ele, como ele. O gato fugia logo que tocavam as vinte e uma. A televisão berrava sons incompreensíveis. O mundo parava...

Porquê preocupar-se com as coisas da terra quando a sua imaginação a levava para realidades tão mais belas? Imajinar-se numa vida que se transformava só com o simples querer, sem esforços, com a brutalidade e intensidade que ela desejasse. Fazer a chuva parar só porque tinha vontade. Tornar-se Deus, o seu pequeno Deus, presenciando tudo o que queria presenciar sem ter que dar satisfações. Olhando pelo que queria observar sem interrupções, sem as pequenas arbitrariedades do mundo. Querer ser egoista sem ter que ouvir repressões.

A rapariga das fotocópias passou por ela sem se desviar, fazendo-a sair por instantes das suas divagações. A revolução estava nas ruas! E já a afectava também. Irritou-se. Correu atrás da garota e agarrou-a pelo braço. Era a primeira vez que corria atrás de algo.
- Tu, miúda, achas bem o que fizeste?
- De...desculpe...foi sem querer...
- Não se empurra assim ninguém sem razão!
- Mas senhora...é a revolução....

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