quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Cartas a um Desconhecido - Fim

Acho que, por fim, compreendo o que faço aqui, escrevendo a alguém que não existe, olhando uma sombra que não é mais que a minha num horizonte de esferas translúcidas, brilhantes de cristal. Apegando-me a imagens que não são minhas - apesar de o serem - criaturas que me invadem os sonhos e assaltam a minha realidade. Porque estou só e não o estou ao mesmo tempo. Tenho todos aqueles que comigo conviveram, os que me abandonaram e os que ainda estão para chegar. Desconhecidos... Sombras que entram e saem da minha vida sem explicação, atormentam-na, afectam-na, e abandonam-na como todos os homens.

Escrevo-vos para não partirem, para não me abandonarem, mas sei que de nada vale continuar a lutar pela vossa presença. São parte da minha memória mas não são parte deste mundo. Por tal, condenadas a desaparecer, nada posso contra a fatalidade do adeus. Permaneço aqui, amando uma após a outra, chorando por todas, acolhendo o desespero como quem acolhe uma velha amiga. Cada uma com a sua história, cada uma com a sua vontade, cada uma com o seu rosto e a sua vivência. Sombras que me alegram nesta sala branca de amarras, sem sol, sem luz, sem o calor do corpo e a suavidade do vento. Sombras... tal como eu.

Atenção... vem aí mais uma.

Oi, esta sou eu. Quem és tu desconhecido?


A porta abriu-se e o rapaz de bata branca entrou sem fazer ruído. A paciente dormia - ou fingia que dormia - e não se movimentou durante os minutos em que este percorreu o quarto. Pelas grades da janela o sol adormecia atrás das montanhas. A Primavera partia sem cerimónias, dando boas vindas a uma verão que já se ansiava e sentia havia semanas. O quarto ficou escuro pela penumbra e encheu-se de sombras. O enfermeiro tremeu ao deixar o copo com medicamentos na cabeceira. Parecia que estavam mais pessoas no quarto...

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