segunda-feira, 24 de março de 2008

Dois Amantes Expiando-se


A ideia não é nova! Quem sai do cinema sem nunca ter lido o livro, mas possui leves reminiscências de outras passadas dadas na literatura anglo-saxónica, reconhece um enredo que poderia ter originado um dos romances da célebre escritora setecentista Jane Austen. Mas na Abadia de Northanger a heroína, alertada para a veleidade das suas mirabolantes histórias, depressa reconhece que não podemos partir para a concepção de uma verdade sem conhecer, sem compreender todos os factos. Já em Atonement (Expiação por estas bandas) lançamo-nos numa aventura com outras tempestades.
Quem lê o livro antes mesmo de ver o filme acredita na possibilidade da redenção, mesmo que o tempo, circular, encontre sempre forma de nos recordar as nossas penas. Construir a vida sobre os pecados de uma infância demasiado protegida, carregar o peso de uma história por cumprir, mas encontrar o descanso nos percalços da velhice aparenta um final feliz, ainda que este não exista. Nada que uma visita pelas obras de ficção de Gabriel Garcia Marquez também não reviva. São formas de contar histórias que se encaixam e que a visão do realizador acaba por ser apenas mais uma no emaranhado das personagens que a constituem.
O filme de Joe Wright também não é, talvez por isso, inovador. A forma como estabelece a narrativa, pelo menos durante a primeira parte, segue a par e passo as cenas e os diálogos do livro de Ian McEwan. Vemos momentos que se repetem por três diferentes olhares. A da menina que ordena e destrói, a mulher que procura, o rapaz que sonha. Tudo ao som do toque martelar da máquina de escrever, tão eterno como datado, numa composição singular como só Dario Marianelli consegue. E sente-se a apreensão, o vibrar fortuito de uma mentira, o impulso ofegante do desejo do ser que nem sempre corresponde à realidade. O pior pecado de qualquer comunicador: ceder à tentação da fantasia.
O livro retrata, no entanto, com mais profundidade a visão das personagens, a sua vivência das situações, as suas memórias e culpas, ajudando o leitor a entrar num universo que vai muito além do romance que serve de premissa à história. Aqui não falamos simplesmente de uma mentira! Entramos, ao jeito de Virgínia Wolf, no olhar de cada um sobre uma situação que viria a mudar a vida de todos. Depois há a guerra, os seus inícios, toda a expressão do desespero e o remorso pelos que ficaram para trás, avançando sempre pela sobrevivência. Um sentimento de verdadeira perda que o filme apenas toca no lado mais excepcional. McEwan relata-o com amargura, raiva e dor. Wright traz a imagem da destruição e da saudade, um registo melancólico que poderia ter sido também de rendição, mas que se deixou pela luta.
Se com o filme compreendemos a história, com o livro conhecemos as personagens. Completando-se, formam um só! Dois amantes expiando-se. Por tal não se deve ler o livro/ ver o filme com a esperança incoerente de um outro final, um happy end à boa maneira da Disney. Deve-se sim folhear as páginas deste romance com inspiração e observar as cenas desta película com deleite. Tudo o resto vem por arrasto: a mesma curiosidade por duas figuras na fonte, a mesma indignação por uma mentira infantil irresponsavelmente levada ao extremo, a mesma angústia pela separação, a mesma esperança num final feliz.
Vale a pena ver filmes que não nos separam das obras que uma vez lemos, apenas as completam. Com maior ou menor ardor pelas palavras e sentimentos que transportam, trazem a magia da ficção requintada pelo sonho do cinema. Não nos decepcionamos, apenas nos voltamos a encantar uma e outra vez por aqueles momentos tão singulares tanto na descrição das palavras como na imagem da tela. Vivem sozinhos, mas não existem sem os outros. Uma nova forma de expiação.

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