terça-feira, 29 de maio de 2007

A Sangue Frio

Perdoe-se a quem devora romances a susceptibilidade para derramar uma ou outra lágrima ao findar o último capítulo do chamado romance “não – ficção” de Truman Capote. A responsabilidade não é mínima. Ao fim e ao cabo partilhámos momentos de uma subjectividade confusa, ordenada sobre um esplendor jornalístico que poucos, mesmo aqueles que são considerados grandes jornalistas, conseguem obter. É o mergulhar num mundo que nós próprios desconhecemos e que consideramos, por tal, fascinante. E ao folhear as páginas de A Sangue Frio consegue-se compreender porque o consideram uma obra-prima. Aglomerar num testemunho tão “pequeno” e “leve” a psicologia atormentada da mente humana é um feito, se não mesmo exemplar único no mundo. Nem os psiquiatras conseguiram explicar de forma tão soberba quem eram Perry Smith e Dick Hitchcock, dois gatos vadios no meio de uma sociedade que os repulsa e não compreende, condenados a vaguear dia após dia pelos restos dos momentos felizes de outrem. Valerá o livro só por isso?
Estes relatos ficcionados de acontecimentos verídicos suscitam sempre o seu quê de polémica. Assuntos melindrosos, até certo ponto macabros, fazem as delícias de qualquer um com o mínimo de espírito de voyeur. Pessoalmente distanciei-me sempre do género, talvez mesmo por o considerar o desbravar mesquinho e ganancioso da desgraça humana. Contudo – e é um facto – se mantiver eternamente e de forma irredutível esta acepção, bem posso esquecer uma carreira jornalística. Pois o livro é isso mesmo: uma extraordinária obra jornalística sobre um quádruplo assassínio, a sangue frio, de uma família respeitada do Kansas (EUA), numa noite de Outono de 1959. Obra essa que não esquece uma visão quase hagiográfica dos criminosos e seus familiares, mas de uma forma tão crua e simples que questionamos: se estivéssemos no seu lugar, não seríamos capazes de fazer o mesmo?

O imediatismo do mundo e dos media contemporâneos não permite que se desvende assim, actualmente, a alma de dois condenados. Vai contra as leis do marketing, da agenda noticiosa, valorizar por meia década uma história que se desgasta e que, para alcançar este êxito, precisa de ser analisada, pesquisada, mentalizada. E ela, a história, vale pelo relato, pela organização sincera e metódica dos acontecimentos e dos pensamentos, pelo pragmatismo e imparcialidade, pela descrição detalhada do ambiente e a escolha das palavras, simples e claras, que conseguem medir todo o pesar de uma tragédia que mais tragédias angariou.
Esta, por fim, não é a história de um quádruplo assassínio, mas de um crime com seis vozes…