terça-feira, 4 de março de 2008

Maria

Era velha, vivia na fonte. Não tinha família, estava só. Arrastava os dias na monotonia da rotina, um balde de água gelada pela madrugada, uma cama por fazer à tardinha, a ceia por cozinhar a toda a hora. Ponto a ponta numa afirmação. Nada se questionava, tudo se repetia, certamente!

A velha era a das sombras, Maria dos segredos, mulher de muitas vidas. Todos a procuravam e ninguém o admitia. As mulheres pela calada, os homens pela penumbra, as crianças a toda a hora - desde que a bola, a boneca, o brinquedo, a curiosidade os conduziam até lá. Maria dos segredos tinha muitas histórias a revelar, menos a dela própria.

Crescera sem pai numa aldeia de trinta casas. As beatas de negro tinham-lhe dado o nome, "perdida" logo à nascença, Maria não podia constar no bilhete de identidade de uma filha do pecado. O barbeiro Fonseca, casado há trinta anos e figura máscula, pai de oito filhos e doze bastardos, que fazia as delícias do olho feminino, cabia a fama de um pai nunca assumido. A mãe de Maria fechava os olhos a dúvidas, pedia aos santos que não lhe trouxessem mais essa miséria, pois fora ele o par da sua filha. Mas que mal? Nem ela própria sabia! Tinha percorrido tantos, outras vidas que guardavam secretismo nas suas contas de rosário, pesando sobre uns ombros que haviam perdido a formosura. A mãe de Maria fechara os olhos. Sempre assim tinha agido, assim morreria a professar a cegueira.

A garota lá foi crescendo, entre a encosta da serra e o mato dos amores, ganhando a fama que do proveito retirava. Dois nados mortos, cinco ou seis abortos. Até que o tempo lhe tirou o orgulho, os anos a vaidade, e das rugas retirou a sapiência, das manhas das avós as bruxarias, dos ensinamentos da vivência uma série de virtudes. Paciente e discreta. Poço dos enganos dos que a procuravam e dos sonhos que tentavam recuperar...

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