quarta-feira, 27 de junho de 2007

Quem matou Liberty Valence? - Memorial aos Westerns


A história não se desvia muito da temática do western que durante largos anos dominou a indústria americana do cinema. Não considero que seja um género ultrapassado ou menor da sétima arte, muito pelo contrário. Por detrás dos planos americanos, pormenor ou grandes planos de enquadramento das personagens há toda uma linguagem significativa que teve e tem a sua importância. De uma forma pessoal, recordo sempre aquela célebre cena de Terence Hill, o eterno Trinitá, no filme O meu nome é Ninguém que basicamente resume a sequência chave de todos os westerns americanos em que os dois inimigos se enfrentam no meio da rua, as pessoas fogem com os tiros, o funerário e o fotógrafo do jornal local de imediato aparecem para cumprirem a sua função e o silêncio se torna sepulcral.
Os dois inimigos fitam-se nos olhos, erguem levemente o casaco e deixam transparecer o brilho das suas armas. Enfrentam-se em pensamento, desafiando-se mutuamente e com a absoluta consciência de que só um deles pode continuar vivo. Antes que a decisão final seja tomada, e que num relâmpago momentânea as pistolas sejam sacadas, o fotógrafo apercebe-se que a fotografia não vai ficar bem e pede, gentilmente, a um dos cowboys (o bom ou o mau é irrelevante, até porque neste caso são os dois good boys) que se chegue um pouco à direita. Ele sorri e satisfaz o jornalista. Estão de novo frente a frente, a pequena cidade do velho oeste apinhada com rostos sombrios mas curiosos. Um leve movimento alerta a população e o fotógrafo dispara. Mas não… Não foi ainda desta. O homem da imprensa pede, mais uma vez, suplicante, que aguardem só mais uns segundos para ele repor tudo no sítio. A cena final é redundante, mas acaba sempre alguém morto!
Neste filme passa-se mais ou menos o mesmo, com a diferença de que quem matou Liberty Valance não foi o protagonista desta cena mediática. É pena, pois até teve direito ao pequeno rolo de palha a passar suavemente por entre as personagens na sequência em que estes se enfrentam com o olhar. Mas o facto é que aquele não era o arqui inimigo do vilão, apenas um jovem bem intencionado que sonhava mudar o mundo. Por outro lado, o papel da imprensa não deixa também de ser fulcral no desenrolar dos acontecimentos. Lá estão também os jornalistas crentes no poder da palavra, na bravura dos seus ideais e na superioridade intelectual, mais que na das armas, para conseguirem marcar a sua posição. A sua presença é peremptória, ainda que não fosse pelo genial comentário final do redactor-chefe do Sunshine Star: “Quando a lenda se torna facto, nós preferimos a lenda”.
Mais que o olhar ao oeste americano dos tempos da ocupação, das lutas com os índios e da corrida ao ouro, o filme resume-se pelo findar de uma época sem lei que sucumbia ao poder da imprensa e da sua força entre as populações desinformadas. É o tempo da alfabetização, da afirmação de um código jurídico e da Constituição, é o tempo em que rufias como Valence já não conseguem escapar ao poder jurídico e que o comboio finalmente une os dois oceanos que banham a América. É o fim do isolamento, da ignorância e o princípio da construção de um país de que os EUA se aprenderam a orgulhar. Não podemos deixar de notar, está claro, aquela pontinha de egocentrismo que envolvem as palavras do protagonista ao falar da bandeira americana, dos ideais de igualdade e fraternidade presentes na constituição, ao mesmo tempo que o único negro presente nos arredores é proibido de ir às aulas por tal não contribuir minimamente para a sua vida, segundo o patrão. Desculpamos este último por estar a perder a namorada para o professor.
Toda a história é uma entrevista ao Sunshine Star e, como tal, foca-se essencialmente no olhar pessoal da personagem central sobre os outros intervenientes na acção. Vemos o líder moral da cidade, o bom homem, trabalhador, que sabe chegar o dia, o momento, em que se tornará famoso pela sua coragem e audácia; vemos o xerife bêbado e medroso, gordo e pacato, que só quer o seu sossego mas que, ao mesmo tempo, se orgulha do respeito que a estrela lhe confere; vemos o jornalista sem iniciativa, sem vontade de se impor, conformado com a sua inércia e também ele bêbado, talvez para esquecer que não tem força suficiente para lutar pelos seus ideais; vemos a donzela analfabeta e romântica que só quer segurança na sua vida; vemos os emigrantes que nada percebem e vieram apenas em busca do sonho da riqueza; deparamo-nos com o bandido, o rufião do chicote de prata que quer ver a sua lei respeitada sob ameaça de morte e os companheiros sem personalidade que o seguem sem refilar; vemos os latinos estereotipados, a completarem o cenário da multiculturalidade, diminuídos na sua importância por não saberem falar inglês; não vemos índios, mas provavelmente tal facto se deve ao seu facto de a acção se centrar na cidade. Para, enfim, tudo ficar completo faltou o alcatrão e as penas…
Comparando com um qualquer filme actual, mesmo dos mais fracos, a realização deste deixa muito a desejar. Os planos conjuntos são frequentes, provavelmente para dar a noção de bastante gente quando, no fundo, são poucas as personagens. Procura-se encontrar um sentido de pequeno mundo afastado da grande metrópole, a small town perdida no meio do deserto e que sobrevive pelo seu esforço e dedicação. Mais uma vez é aqui que a imprensa cumpre o seu papel, mostrando que existe mais lá fora, que existe uma regra, uma norma a cumprir, ainda que afastada e tardiamente divulgada. Anseia-se pela barragem, pela estrada de ferro, pela estabilidade, vislumbrando-se sempre uma réstia de esperança no povo conformado, uma alegria inata, que a cerveja ajuda a preservar, nos rostos dos suecos que servem com orgulho as suas refeições, no xerife que esquece os problemas sempre que vê um bife na sua frente, na donzela quando descobre que ainda pode aprender a ler, no advogado/jornalista/professor quando insiste em colocar a tabuleta com os seus serviços no edifício do jornal, no próprio taberneiro que não serve a bebida enquanto a votação não terminar, no cowboy honrado que prefere perder a noiva a deixar que alguém com capacidades se iniba de abraçar a política e lutar pelas causas da população.
A película fala, por fim, de uma lenda e da forma como essa lenda nasceu. Fala da chegada da informação e do que acontece quando ela não existe. Fala de valores, juízos e preconceitos, honra, coragem e determinação. Os actores talvez fossem velhos de mais para a fase passadista da história, contudo o facto perdoa-se. Todo o cenário é claramente criação de um estúdio e as exibições não são de merecer um Óscar (pelos menos pelos padrões actuais), porém a mensagem é categórica. O argumento não é original e o desenrolar facilmente previsível, no entanto julgo, mais uma vez, que a citação final do jornalista resume em si todo o poder da história e salva todo o filme. Para o povo, para o leitor, para a notícia não interessa a pura e crua realidade de um advogado desajeitado que não sabia empunhar uma pistola. Interessa sim e apenas o relato de um homem que não acreditava na guerra e na violência, que tinha fé na razão e na lei, que acreditava na justiça e que, apesar de uma pontaria horrível, conseguiu matar Liberty Valance. Todo o resto vai a enterrar sem honra nem cerimónia. Todo o resto, tudo o que se rendeu à norma de uma época perdida, não merece fazer parte dos anais da história.

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