Desde que cheguei a Macau, há uma frase que uso correntemente nos e-mails que envio para o pessoal de Portugal, dando conta das várias experiências por que vou passando, quer a nível do trabalho quer a nível pessoal: "acontece-me de tudo nesta terra". A malta já se ri e até envia comentários a respeito, mas, verdade seja dita, todos concordam com a frase. Até porque, estes meus seis meses por terras do Oriente foram pejados das mais variadas situações, umas imprevistas, outras nem tanto, mas que, uma a uma, deram o colorido ás lembranças que vou guardando. Nem tudo foram rosas. Diria antes que houve uma boa dose de lótus e alguns malmequeres. Aproximando-se agora o final deste período, embora já saiba que vou voltar, uma série de considerações vão surgindo, em espécie de balanço, e que resumem a minha experiência em Macau. A maior de todas elas é a resposta a uma pergunta que por inúmeras vezes me fizeram, mas que só recentemente encontrei a resposta. Se gostava ou não desta terra...
Quase maquinalmente, a minha contrapartida era sempre a mesma: gosto de partes de Macau. Nunca soube muito bem dizer efectivamente a que me referia, mas na minha confusão de espírito era a resposta mais ou menos acertada. Até que, desde há umas semanas, essa conclusão foi obtendo imagens, muitas vezes ideias, até que atingiu uma forma definida, correcta e que em tudo me agrada, porque, no fundo, corresponde àquela que foi sempre a minha maneira de ver o mundo, de construir as minhas histórias
, os meus discursos e, inclusive, o meu próprio dia a dia.
É já costume comentar que me agradaria ter conhecido o Macau de há 10 anos, quando ainda conservava o seu lado mais rural, de enclave português esquecido no Oriente, antes da invasão americana de casinos, dos aterros no meio do rio e do exibicionismo e extravagâncias que o dinheiro provoca, ainda que não seja exactamente ao capitalismo que, julgo, devamos atribuir as culpas. Mas sim... Tenho alguma nostalgia por aquele Macau que não cheguei a conhecer, tão longe do meu imaginário quão maior é o choque que em mim despertam as fotografias antigas. Contudo, depois de algumas visitas pelo Macau antigo, num passeio inesquecível com o professor Cavalheiro (quem estiver a pensar em vir passar um temporada a Macau, tem obrigação de fazer este percurso), acabei por descobrir que mais que uma década, escaparam-se três ou quatro. Escapou-me o momento em que Macau, apesar de visivelmente dividido, possuía uma identidade própria, indiscutível, característica e tão particular que lhe conferia quase um certo romantismo, ainda que este existisse muito pouco.
De modo que acabo por apreciar os resquícios daquele Macau de antigamente e as histórias que eles me despertam, porque, afinal, a sua mutação nem está assim tão separada de mim no tempo, está apenas pelo progresso, pelas inevitáveis transformações da união com a China e pelas necessidades da evolução e dos homens. Claro que a Macau do século XXI também possui os seus encantos, ou então eu não veria noivas de cada vez que vou dar umas voltas pelo Venetian. Tem o seu lado mais frenético, por vezes mais obscuro e mais fiel a narrativas de detectives, mas também possui a face das luzes e a noção daquele impulso que a conduz ao cariz mais interessante da vida. Dá um certo gosto passear pela Almeida Ribeiro e ouvir a música, sentir o perfume que vem do Grand Lisboa. Estaco sempre no Wynn durante dez minutos, quando venho do NAPE, para ver os espectáculos com os repuxos, alguns até que já conheço de cor. E a cidade tem uma vida...diferente, que é de vício e crime em muitos dos seus aspectos, mas também é de alegria, convívio e de satisfação.
Nas festas de São João do último fim de semana, apesar da chuva que me deixou completamente ensopada, não resisti em adquirir, a preço da chuva, os "Contos de Macau" de Henrique de Senna Fernandes. Li-os cerca de três semanas antes de vir para este lado do mundo e agora, seis meses depois, volto a relê-los com a mesma paixão e deleite. No entanto, operou-se uma transformação. O nome das ruas, dos locais e, em alguns casos, das pessoas, são-me conhecidos, passo por eles no meu dia a dia. Do que era uma simples imagem, hoje consigo recriar, passo a passo, a história e apercebo-me que, enfim, hoje já faço parte dela. E, simplesmente, porque da imaginação de quem não conhece, passou a existir a imaginação de quem também possui as suas memórias e...as suas histórias.
Ao fim de uma semana, alguém me disse que eu já estava adaptada a Macau. Na altura ri-me, mas sim, mais ou menos... Verdade, verdade, pouca coisa me espantou nos primeiros tempos, já vinha familiarizada com grande parte da cultura e o facto de conseguir ler caracteres nos letreiros e placares dava-me uma noção de familiaridade que só quem também teve a mesma experiência pode entender. Interessou-me sobretudo o lado histórico de Macau, do qual sabia muito pouco, e que vim assimilando com grande curiosidade sempre que essa oportunidade me era facultada. Agora, encarar a terra como uma segunda casa ainda vai levar o seu tempo. São necessárias
outro tipo de experiências, de convívios, de recordações que ainda não presenciei. Um dia sairei de Macau com a alma pesada e a gaveta cheia de anotações. Por agora tenho apenas rascunhos.
Mas sim, não houve nada que não me sucedesse nesta bendita terra. Desde entrar nos locais mais incríveis a conhecer pessoas que nunca na minha vida imaginaria que estaríamos no mesmo país, quanto mais na mesma sala. Conhecem-se novas ideias, novas concepções de vida e adquirem-se experiências que nos marcam, com maior ou menos peso, mas que não esquecemos.
O guião não acaba aqui, não senhor. Ainda este mês não vai terminar sem eu me ver a passear pela Cidade Proibida e a conseguir ver (espero eu) o mausoléu do Grande Timoneiro. Dessas andanças, no entanto, darei conta na devida altura. Até lá vou andando em projectos e a preparar as malas para mais uma viagem.