Chegou a Primavera! Parece anúncio de campanha publicitária a uma qualquer marca de roupa, mas a Primavera – é um facto – não vende só matéria, vende também ideias, conceitos. Quem se aproximar por estes dias do Jardim Botânico de Coimbra não terá que desembolsar os habituais euros (como é prática corrente na maioria das visitas culturais desta cidade), mas deverá abrir a mente. Quem não for entendido, que reabra o espírito! Chegada a Primavera, algumas coisas são mesmo o que parecem ser…
O primeiro olhar desperta o eterno paradoxo do natural versus o material, o belo versus o feio, o elegante versus o rude, a obra humana, fria, crua, opaca, e a obra de Deus, quente, multiforme, perfeita. Mas porque não partir por esse caminho? O desfilar das peças de Rui Chafes (escultor lisboeta cuja inspiração artística advém do romantismo alemão) pela avenida central do Botânico não se confunde, não se mistura, muito menos pode passar anónimo aos olhares dos estudantes que, de pasta debaixo do braço, se perguntam por que mãos – do céu ou da terra – aquelas esculturas em aço, a sucumbirem, elas próprias, aos ditames da natureza, vieram aterrar (ou pairar, consoante os casos) na paisagem primaveril daquele jardim de Coimbra. Uma ou outra são, inclusive, vítimas da rebeldia juvenil, onde redes que suspendem esferas com adornos de fogo fazem as vezes de cestos de basquete a vários tipos de embalagens de refrigerantes.
A exposição tem por título A mesma origem nocturna. A placa que lhe serve de legenda afirma que o Romantismo de Chafes só poderia encontrar paralelo ao Racionalismo do Botânico. O marquês, provavelmente, não acharia piada a tais modernices! Imaginá-lo passeando por entre obras que fazem o reflexo da arte contemporânea, que buscam as imagens de estranhos objectos de guerra, alguns até de tortura, é vê-lo subir ao palanque da forca para cumprimentar a Senhora Távora. Tem a sua piada, o seu glamour, uma estranha inclusão de sentido, ainda que desconexo, mas continuamos a assistir ao rebaixar do mais nobre perante o poder do mais forte.
De nocturno há a sensação do retorno aos Génesis, a criação divina que se rompe do negro vazio e a obra humana criada para os mais obscuros fins. O jardim e a escultura, então, completam-se! Já não são elementos conjugados no mesmo espaço por um estranho acaso do destino, mas obras moldadas nas mesmas malhas incógnitas, frutos de enigmas que a humanidade transporta, de que é filha, costela deslocada do corpo, mas cujo verdadeiro sentido, primeiro objectivo, ainda hoje desconhece. Como justificar uma flor, o coaxar de uma rã na fonte coberta de lodo, os líquenes que se incrustam no aço, o quente calor da tarde que sufoca e traz a Abril a Primavera? Como explicar a suspensão das esferas, que parecem em breve cair sobre nós como balas de canhão, a base metálica malhada de uma espécie de maca tanatológica ou um tripé de vários metros a recordar um estranho engenho de batalha? Quem compreende o tempo, que passa por nós como flecha, que nos levou a sonhar, a criar, a conceber todo um mundo que se suporta destruindo a natureza? Todos nos surgem eternamente presentes, não lhes podemos negar a nossa inteligência, mas nem um nos pode fazer entender a sua criação.
As peças de Chafes e o Botânico parecem assim partilhar a mesma origem, ainda que não pertençam à mesma matéria. Uma ode a Nix, deusa grega da noite, irmã do Caos, mãe da Morte, dos Sonhos. Forma algo simples de dizer que, apesar das dúvidas, todos sabemos quem somos e o que queremos, mas não de onde vimos nem para onde vamos. Entre o racional e o romântico permanece a incerteza da existência, as suas dualidades, as suas incoerências. Por muito diferentes que sejamos, no fundo, todos possuímos a mesma essência!